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Luís Neves, diretor nacional da PJ
© Gerardo Santos / Global Imagens

"Não é saudável para a democracia que os corruptos demorem a ser julgados"

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Nunca deu uma entrevista. O diretor da PJ prefere agir a falar. Mas a verdade é que o sentido cívico que imprimiu nesta polícia está a mudá-la por dentro e a ganhar apoios para a modernizar. Uma conversa longa, depois das polémicas de Rui Pinto, Tancos e das importantes investigações à extrema-direita violenta

Luís Neves tomou posse como diretor nacional da Polícia Judiciária (PJ) há dois anos. Na bagagem tem uma carreira de mais de 20 anos na frente de combate ao crime mais violento, como terrorismo, extrema-direita, homicídios e até espionagem internacional. Imune a todas as pressões, liderou as polémicas investigações a Tancos e acompanhou de muito perto a de Rui Pinto. Em tempo de pandemia, mostra como a PJ não parou de trabalhar e quebra, agora, um longo silêncio nesta entrevista.

Estes tempos da pandemia têm sido desafiantes. Como é que a Polícia está a lidar com esta nova situação?A Polícia Judiciária (PJ) está a lidar dentro daquilo que são as regras do estado de emergência e de calamidade. Tivemos a capacidade de antever e perspetivar o trabalho da organização logo no dia 3 de março, tempos antes até de ter sido decretado o estado de emergência, e organizámo-nos.

Criámos uma equipa de resposta, uma sala de situação, para podermos ter informação a prestar a todos os trabalhadores e à sua família mais próxima. Era um momento de grande incerteza, de grande dúvida, de muitos receios - de pânico - e até de alguma histeria exagerada. É bom que se diga isto: até alguma histeria exagerada. Surgiu um medo - estou a falar de uma forma geral, em termos da sociedade - indescritível, e nós organizámo-nos para responder a tudo isso.

Criámos uma equipa com gente preparada do ponto de vista científico para fornecer respostas; linhas dedicadas; uma sala de situação em que procurámos conhecer as situações de dúvida de tratamentos profiláticos, de exames. Tivemos três pessoas infetadas, todas a partir da sua relação mais próxima - marido, mulher, pessoas ligadas à saúde casadas com profissionais nossos, uma senhora que trabalha numa companhia aérea -, e conseguimos, de facto, delimitar através desta equipa.

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Luís Neves, diretor nacional da PJ, tomou posse há dois anos
© Gerardo Santos / Global Imagens

O que presidiu na organização laboral - para a direção nacional e eu próprio - foi que nenhuma instalação da PJ fecharia, como não fechou, não deixámos de responder a qualquer crime de cenário que nos fosse comunicado e tivemos resultados absolutamente excelentes nesta área. Dissemos, como sempre o fazemos aqui, o seguinte: as pessoas têm liberdade para organizar, os dirigentes têm liberdade para organizar o seu trabalho, o seu espaço, a sua gente.

As instalações da Polícia são muito diferentes umas das outras. Implementámos horários desconcentrados, teletrabalho naquilo que é possível. Tudo isso fizemos, e o que orientou as decisões foi dar liberdade às pessoas com o máximo de responsabilidade.

E o regresso à "normalidade" está a acontecer da PJ?

Já está a suceder. Há uma questão essencial que tem que ver com o covid-19 e que se prende com o seguinte: nós organizámo-nos, nenhuma unidade fechou, trabalhou-se, houve liberdade, responsabilidade. Compreendemos toda a necessidade de se apoiar os trabalhadores, as suas famílias: há pessoas vulneráveis que necessitam de especiais cuidados, idosos para tratar, há filhos para cuidar, surgiram inúmeras e incontáveis situações inesperadas e que se prenderam com os valores entre a estrutura familiar.

Nós compreendemos tudo isso e houve liberdade para todos se organizarem. Como ocorre no nosso país, estamos na fase do regresso à normalidade. O trabalho de polícia é na Polícia, na rua. Nós somos polícias, e os polícias não ficam em casa, e, de facto, laboramos em condições adversas e distintas das habituais. Na sua generalidade a Polícia regressou à sua normalidade desde o passado dia 18.

Este plano foi acionado no início do mês. Tivemos uma reunião de carater nacional onde foram transmitidas instruções, criámos as condições todas para que as pessoas pudessem trabalhar, nunca faltou qualquer equipamento de proteção, mesmo nas horas mais difíceis de alguma falta de meios para adquirir, até de exageros nos preços.... Nada faltou e assim trabalhamos cumprindo a nossa missão.

Que efeitos é que a pandemia teve, ou vai ter, no crime? Houve uma diminuição muito grande, certamente...

Há uma diminuição, na maior parte do tipo de crimes que normalmente ocorrem no país, mas houve outros segmentos de criminalidade que surgiram e que aumentaram, sobretudo os ligados à área do cibercrime. E também as burlas relacionadas com o pânico e a fragilidade que se instalou nas pessoas; por exemplo a venda de material relativo à saúde.

De que forma é que isto influencia também, no curto prazo, a vossa definição de prioridades na investigação criminal?
Por acaso entronca naquilo que já eram as nossas preocupações. Há áreas que têm vindo a ser reforçadas, mas que necessitam de um maior incremento de recursos humanos e tecnológicos, sobretudo a da cibercriminalidade e a da corrupção.

Vai ser uma prioridade?
Já o é. Já foi no passado recente, e será no futuro. Como todos conhecem, tivemos dificuldades, e continuamos a ter algumas debilidades em matéria de recursos humanos. O diagnóstico já foi feito, e começaram a ser colmatadas algumas das necessidades nestas áreas. Não na totalidade, mas com uma programação no recrutamento de meios humanos poderemos alcançar os nossos objetivos.

Nesta área da cibercriminalidade a PJ tem feito um trabalho de excelência. Temos detido muita gente pela prática de crimes graves, temos tido um vasto conjunto de investigações de cariz internacional, com detenções em várias partes do globo.

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Luís Neves, diretor nacional da PJ, no topo da sede em Lisboa
© Gerardo Santos / Global Imagens

Ainda recentemente detivemos um jovem, da área do hacktivismo, que atacou inúmeras estruturas do Estado e multinacionais. Temos feito um conjunto de trabalhos em que estão em causa valores importantes da própria democracia, do Estado, que se fazem e não se publicitam, face aos interesses em causa.

Por vezes, a prevenção de certos tipos de criminalidade obriga a remetermo-nos ao silêncio, deixando que a Justiça atue nos seus tempos. Nós somos uma polícia pequena, mas que tem de ser uma polícia com excelência.

O caso Rui Pinto foi a mais debatida investigação de cibercrime da PJ. Estes "hackers do bem" são legítimos neste mundo complexo?
Todos os que tivemos de trabalhar para que se verificasse uma reversão relativamente ao silêncio do Rui Pinto - quer a PJ, quer o Ministério Público [MP] no Departamento Central de Investigação e Ação Penal ]DCIAP], sobretudo o seu diretor, o Dr. Albano Pinto, que é um homem de mente aberta e que o que procura é a verdade e o esclarecimento dos factos, e, sobretudo, o advogado português, o Dr. Francisco Teixeira da Mota -, percebemos que havia um caminho para fazer.

Sabíamos que no início era difícil porque houve algum tempo em que o Rui Pinto esteve na clandestinidade. Foi difícil localizá-lo, difícil detê-lo, foi a sua entrega às autoridades portuguesas, foi o inquérito... Todos tínhamos a noção de que enquanto a acusação e a instrução não estivessem resolvidas haveria dificuldade em mudar a posição do Rui Pinto.

Tive sempre isso em mente. Nesse período não era possível efetuar qualquer tipo de abordagem. A partir daí trabalhámos - a defesa, a acusação e a PJ. O que presidiu a tudo isto, e o que preside, como sempre na área da justiça criminal, é a assunção plena daquilo que é o princípio da descoberta da verdade material.

Haverá um momento em que todos quereremos saber o que é que o motivou - se foi de facto a questão do combate do Rui Pinto do ponto de vista ético para denunciar e expor comportamentos criminosos ou se foi outra esfera que o conduziu à prática dos crimes pelos quais está pronunciado. A sociedade tem o direito de saber e compreender todo este caso. Por isso envolvemo-nos muito fortemente na busca de uma solução que permitisse chegar a este ponto.

Mas assim faz sentido que ele continue preso?
É a medida de coação que o tribunal aplicou. Não é normal no fim de uma instrução um juiz de instrução criminal decidir a mudança de uma medida de coação. Mas todos nós temos de assumir a nossa responsabilidade, e a PJ assumiu que estava a assistir-se a uma inversão comportamental por parte do arguido. Essa inversão implicava a possibilidade de se ter acesso à continuação da investigação, porque há inquéritos que estão em aberto. E, sobretudo, ter acesso a outro tipo de informação.

O que é que quer dizer com essa inversão de comportamento?
O Rui Pinto foi acusado e pronunciado com parte substancial daquilo que a PJ conseguiu descodificar e abrir nos equipamentos que lhe apreendeu na Hungria, e naquilo que já eram suspeitas anteriores. Existiam outros equipamentos que, na altura, ainda não tinham sido desencriptados, e que entendíamos que a sua leitura era importante. A abertura destes equipamentos poderia nunca ser possível. Com esta nova disposição, tudo aquilo que estava na sua posse, do ponto de vista de acesso a determinado tipo de informação, foi aberto. A PJ e o MP, numa real consonância de vontades e em linha de ação com o DCIAP e com a Defesa, tiveram acesso e desencriptámos esse material.

Foi difícil convencer Rui Pinto a dar essa ajuda à investigação? Até que ponto é que a pressão internacional que houve em torno deste caso também contribuiu?
Pela parte da investigação a pressão internacional contou zero. A PJ é conhecida por não ceder a qualquer tipo de pressões. O que nos move é a lei, a justiça e a ética e a descoberta da verdade. Não há mais pressão alguma.

Mas para o Rui Pinto a pressão internacional e o papel que ele desempenhava, o sentido cívico, fê-lo calar-se durante muito tempo...
Esse foi o apoio que o Rui Pinto naturalmente sentiu e que o levou a sedimentar o seu silêncio. É evidente que a motivação de cada ser humano se vai formando com vários inputs e, naturalmente, esse apoio externo permitiu, em parte, que Rui Pinto se sentisse apoiado. Teve acesso a segredos relevantes, por via da sua atividade permitiu a criação de consórcios para análise e divulgação da informação... Mas o que é certo é que Rui Pinto vivia em condições muito difíceis e na clandestinidade, não usufruindo de qualquer parte da riqueza gerada por outros através da sua atividade.

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Luís Neves, diretor nacional da PJ, no seu gabinete esta quarta-feira
© Gerardo Santos / Global Imagens

Está a falar na Hungria?
Na Hungria vivia isolado, numa casa e num bairro não propriamente ao nível de quem gerava uma determinada riqueza. Mas este é um assunto do Rui Pinto. Falo aqui como cidadão, falo como polícia, durante toda a minha vida trabalhei com colaboradores, com pessoas com quem criamos laços de confiança, que nos aportam informação muito relevante, com pessoas que precisam de ser protegidas, com pessoas que mesmo depois de presas precisaram da nossa ajuda e nós estivemos presentes. São pessoas. Nós precisamos todos uns dos outros. A questão é que o polícia, a Polícia, lida com pessoas.

Neste caso estamos muito orgulhosos do nosso trabalho. Acho que estas três entidades, o MP, nós e a Defesa, conseguimos encontrar um caminho que permitirá - isto é que é importante na Justiça - que um órgão de soberania, os tribunais, compreenda na sua plenitude o que se passou.

Já abriram novas investigações com base nas informações?
Eu não gostaria muito de falar nisso, tem de existir discrição e segredo. A investigação criminal precisa de informação que é diferente do que é que é a prova - são indícios, sinais, seguir caminhos. Nós temos a nossa linha de pensamento estruturada na ética moral e na ética jurídica, isso está muito bem arrumado na nossa cabeça.

Como é que vê o Rui Pinto daqui a dez anos? O que é que acha que vai acontecer?
Do que tenho vindo a conhecer dele, acho que ele pode vir a ter uma vida normal dentro da área da informática. É uma pessoa relativamente jovem e culta, com preocupações de defesa do coletivo, preocupado com questões de igualdade, justiça social, e isso é importante. Irá responder a tribunal, o tribunal decidirá que crimes cometeu ou não, que pena terá ou não. O que eu espero para o Rui Pinto, como qualquer arguido, e para todos aqueles que ao longo da minha vida profissional foram detidos por minha determinação, é que possa regressar a uma vida normal e não reincidir em práticas criminosas.

Tem participado nas reuniões do grupo especial que foi criado contra a corrupção. Que balanço é que pode fazer?
Quem nos representa é a diretora da Unidade Nacional de Combate à Corrupção [UNCC], coadjuvada por uma coordenadora de investigação criminal jovem, mas com grande experiência de investigação deste fenómeno. Ali temos reportado a nossa experiência, preocupações e dificuldades na investigação deste tipo de crimes. Temos de encontrar medidas, justas e equilibradas, face aos bens jurídicos que são postos em causa, que possam ajudar a combater este flagelo, esta "praga", mas que possam, também, ser aproveitados para a repressão de outros tipos de criminalidade organizada mais gravosa.

Nesse sentido, o que é que pensa que está desadequado na nossa legislação nesta área?
Quando comparada com os nossos parceiros europeus, Portugal tem uma legislação que podemos considerar adequada aos nossos índices da criminalidade económico-financeira. Este acervo legislativo foi publicado há 20 anos, quando o atual primeiro-ministro era ministro da Justiça.

Mas, como já disse noutra ocasião, temos de nos deixar de algum cinismo e hipocrisia no que diz respeito à posição dos arrependidos e dos que, sendo suspeitos ou arguidos, estão dispostos a colaborar com a justiça. O nosso sistema processual penal pode levar a que a única pessoa que colabora com a justiça possa vir a ser a única que é condenada.

Isto é muito negativo e desincentiva todos os outros que possam ter a intenção colaborativa para com a justiça. Isso é terrível para um magistrado, mas sobretudo para nós, polícias, porque somos nós que lidamos com as pessoas durante muito tempo. A intervenção de um arrependido ou de todo aquele que se predispõe a colaborar com a justiça tem de ser agilizada na fase inicial da investigação.

Para um inquérito sólido e não demasiado moroso, a pessoa que se predispõe a colaborar com a justiça deve saber desde logo como é que a justiça o vai tratar. Temos de encontrar um modelo em que seja possível garantir algo.

Podemos usar os bons ensinamentos de outros ordenamentos jurídicos, designadamente o italiano - onde este tipo de compromissos é balizado pelas autoridades judiciais, até porque há direitos, liberdades e garantias de terceiros que importa salvaguardar.

Este é um ónus que o Estado tem de assumir se quiser realmente alterar alguns dos paradigmas do combate a este flagelo, que a todos atinge e prejudica, que é a corrupção. Porque o agente criminoso, quando comete os crimes, tem uma dianteira relativamente a quem os reprime - a nós, Polícia - que muitas vezes é impossível de recuperar.

Precisamos de ter uma figura que permita trabalhar e investigar como anteriormente referi. Se não tivermos alguém em quem possamos apoiar-nos, não conseguimos chegar em tempo útil a determinados patamares das organizações criminosas

A PJ fez, pelo menos desde que tomou posse, diversas operações relacionadas com a corrupção, a nível das autarquias, do Estado, de fraude na obtenção dos subsídios europeus, de financiamento de partidos, cujos resultados ainda não se sabem. A ex-procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, disse uma vez uma frase que foi: "O Estado continua capturado pela corrupção." Neste momento, subscreveria ainda esta frase?
Penso que ex-procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, tinha essa frase como uma forma de alerta para um fenómeno que existe e é muito preocupante. Não digo que o Estado esteja refém. A democracia funciona, as instituições relacionam-se, polícias e magistratura têm dado sinais de vitalidade e de coragem para enfrentar e investigar seja quem for, nas palavras do nosso Presidente da República "doa a quem doer".

Isto, como todos sabem, nem sempre foi assim. A corrupção reduz as receitas do Estado e põe em risco o investimento e o desenvolvimento. Afeta a livre concorrência, distorce os mercados, o investimento, a livre iniciativa. A corrupção viola os direitos humanos.

A corrupção favorece as associações criminosas e o terrorismo, a radicalização - pela falta de oportunidades resultante do mau emprego dos dinheiros públicos e da falta de investimento privado. E atinge especialmente os mais vulneráveis (porque o investimento deixa de ser efetuado em hospitais, escolas, infraestruturas).

A pequena corrupção é o "caldo" propício onde floresce a grande corrupção. A corrupção afeta o Estado de direito democrático, afeta a boa governação e a igualdade. Os cidadãos perdem a confiança na democracia, nas instituições e nos líderes. Será exagero entender o crime de corrupção como crime contra a humanidade? Este assunto já hoje se discute na ONU.

E porque demoram tanto essas investigações? A justiça lenta não é um sinal contrário ao que se pretende dar à sociedade?
Há um problema grave que estamos em vias de minorar: a PJ esteve muitos anos, desde 2010, sem entrada de quadros. Assistiu-se à saída de gente e ao envelhecimento dos elementos da investigação criminal. O atual governo permitiu materializar um curso aberto em 2015. Em setembro de 2018, entraram 120 inspetores e temos uma reserva de recrutamento.

Neste momento está a decorrer um concurso para mais cem inspetores. Em finais de 2021 teremos um reforço a rondar os 35%-40% dos meios que tínhamos em 2018. E isso é muito relevante e permitirá alterar o paradigma que a atual direção nacional encontrou.

Outro grande entrave são as perícias. Nestas operações, trazemos muita informação, muito papel, cada vez mais material digital, e que precisa das perícias contabilísticas e financeiras que estão neste momento a trabalhar de uma forma mais organizada. Já nos permitiram, também agora, o recrutamento de 30 peritos.

A PJ não recrutava desde 2011 qualquer perito, e vão sobretudo reforçar estas áreas. Por outro lado, temos uma nova lei orgânica que nos permitiu criar uma unidade autónoma para as perícias informáticas e digitais, portanto é um salto qualitativo muito grande.

Existe uma grande demora em operacionalizar este tipo de investigações, sobretudo pela falta de meios que sentimos e que é de todos conhecida e que procuramos ultrapassar pela forma descrita. A corrupção tem de poder vir a ser investigada como todos os outros crimes: com a proatividade adequada e necessária, investigar tão próxima do espaço temporal em que os crimes foram cometidos ou que possa inclusivamente estar próxima do momento de preparação que esteja em curso.

Não é saudável para a realização da justiça e para a própria materialização da democracia que os corruptos, aqueles que mais atingem os interesses do coletivo, que contribuem para o desequilíbrio das contas públicas, que distorcem a verdade e os naturais mecanismos da economia em proveito próprio - em alguns casos, muito proveito -, demorem demasiado tempo a ser julgados, conduzindo a situações em que nunca sejam efetivamente, por via da prescrição ou outras que se prendem com o fim de ciclo de vida do próprio arguido, julgados e condenados.

Quando o recrutamento de inspetores e de peritos estiver finalizado, e está em curso, com estas novas unidades estaremos em condições de ultrapassar estes obstáculos. Resumindo: inspetores, perícias contabilísticas e financeiras, perícias digitais e estruturas de análise de informação, decerto, conduzirão a que a celeridade possa ser outra.

A falta de meios não vai ser argumento para a demora de todas estas investigações?
Nenhuma organização, em lado algum, chegará ao dia de dizer que tem os meios todos. O que nós procurámos, e foi isso que levou a esta inversão, depois de assumirmos estas dificuldades e constrangimentos, foi ir à procura de soluções, que agora começam a aparecer.

A extrema-direita é um tema que voltou à ordem do dia, com uma nova investigação a dezenas de crimes de ódio e 37 suspeitos skinheads arguidos. Qual é o real peso deste problema no nosso cenário criminal?
Quando está em causa a prática de crimes e o discurso político sustentado no ódio e na sua apologia, torna-se evidente que temos um problema grave. O peso é sobretudo do ponto de vista daquilo que significa o advento de estruturas ideológicas neofascistas, neonazis e com uma vertente identitária, com discurso marcado pelo ódio.

O ódio racial, político, religioso, de género, contra os imigrantes, tudo isto tem de ser reprimido. E não pode motivar um discurso e uma ação violentos e exacerbados. Nessa perspetiva, a PJ estará sempre na primeira linha de combate, quer do ponto de vista preventivo quer do ponto de vista repressivo.

O que nós sentimos é que depois desses crimes - entre os quais tentativas de homicídio, que ocorreram entre 2013 e 2017 - deixámos de assistir ao cometimento de crimes de sangue. Tudo isto passou agora para a internet, para as redes sociais. Há um discurso inflamado, com perfis falsos e que não permite a identificação fácil de quem está por trás, que procura um discurso divisionista, homofóbico, racista, xenófobo, contra a questão migratória. É evidente que isso passa por um comando ideológico.

Esta recente investigação, culminou em 2016 com algumas detenções (e que nenhum arguido ficou em prisão preventiva). Estamos em 2020 e a acusação ainda não foi deduzida. Há, pelo menos, 18 vítimas à espera de justiça. Uma delas, com quem falámos, diz que só terá paz quando houver um julgamento. Que resposta é que vocês podem dar a estas vítimas, tendo em conta a demora na reparação do que lhes aconteceu e a revolta que sentem por não verem a justiça ser feita mais depressa?

Este tipo de investigações é difícil, sobretudo em dois patamares. Se nós estivéssemos a investigar e a remeter para o MP caso a caso, aí não havia grandes constrangimentos. O que é certo é que nós entendemos que estes crimes, da forma como são cometidos, não podem ser julgados caso a caso.

Há toda uma envolvência grupal que se chama, na parte jurídica, associação criminosa e isso leva tempo, porque nós vamos descobrindo inquéritos que têm de ser incorporados. Por outro lado, essa investigação surgiu num momento em que nós ainda não tínhamos afetos meios humanos que hoje já começamos a ter.

A unidade responsável, a UNCT, tem a matriz do terrorismo em cima da mesa e nesse caso há tentativas de homicídio. Quando não há uma detenção, uma prisão preventiva que ponha a pressão para que as coisas andem mais depressa, as coisas arrastam-se um pouco mais do que aquilo que seria desejável. É evidente que temos de dar uma resposta à sociedade em geral e, sobretudo, às vítimas.

Agora, quero dizer a essas vítimas que se não fosse a investigação feita de uma forma global e fosse espartilhada, nunca a sociedade nem a vítima teria de facto a recompensa de levar esta gente a julgamento por aqueles crimes que efetivamente cometem.

Hoje em dia, num país como Portugal, é pior o perigo da extrema-direita radical ou o perigo do terrorismo?

São ambos perigosos. Um existe efetivamente, o terrorismo de matriz confessional. Existe e passámos, sobretudo na Europa, por períodos terríveis como o início dos ataques de novembro de 2015 em Paris e depois na Bélgica e por aí fora. É preocupante o que se passou, e o que se passa, no espaço sírio-iraquiano com o famigerado autodesignado Daesh e com a questão dos lobos solitários. Em Portugal, são os nossos serviços de informações que fixam o estado de ameaça em que estamos. Neste momento é o moderado, que é o segundo mais baixo.

É relevante a atividade de matriz jiadista do ponto de vista do terrorismo porque o grande perigo é o adormecimento, o doutrinamento, e tudo aquilo que se pode passar que nós, forças de segurança, não tenhamos conhecimento.

Mas é evidente que quanto à extrema-direita radical, violenta e criminosa, temos de estar atentos. Nós não podemos esquecer do que representa para uma sociedade liberal, de aceitação de todas as diferenças, o que aconteceu na sociedade norueguesa com o ataque de Anders Breivik.

Não podemos esquecer que 2019 e já este ano foram anos de ataques de matriz neonazi, fascista, visando a comunidade judaica, os imigrantes, pessoas que têm uma religião, seja ela qual for, uma visão política seja ela qual for, e isso não é admissível aceitar este tipo de ataques e o discurso radical de ódio.

Não é o número de vítimas ou de ataques, que é muito preocupante naturalmente e que merece uma resposta dos Estados, é sobretudo o trabalho silencioso que essas organizações procuram difundir através de mensagens altamente censuráveis, algumas delas, repito, a roçar a prática de crimes.

Nesse sentido, qual é o efeito de fenómenos mais institucionalizados como partidos de extrema-direita ou mais radicais como o de André Ventura, no efeito que isso depois tem nessas redes?

Isso é simples, é a democracia a funcionar. Há uma coisa que se chama o voto popular, e esse é respeitável e temos de o respeitar.

Mas onde é que vocês encontram o limite entre os discursos que podem inspirar ou motivar ataques xenófobos, por exemplo, e a liberdade de expressão?

Esses limites estão consignados no próprio Código Penal, sobre quando há discursos de ódio que levam ao incitamento e à agressão e fundamentam tudo isso. Não é fácil, quer do ponto de vista policial, quer do ponto de vista da assunção do titular da ação penal e da magistratura, ver onde é que está a liberdade de expressão e onde é que, de facto, está a motivação com um discurso de ódio.

Quando nós assistimos a perfis falsos, que maquinalmente só trabalham dia e noite para promover um discurso xenófobo, racista, é evidente que estamos aqui perante pessoas que estão aqui a procurar "deitar gasolina no que agora ainda é uma pequena fogueira".

No caso de Alfragide, a investigação da PJ e a acusação do MP encontraram motivações racistas numa força de segurança. O que é que sentiu quando ouviu a sentença afastar a motivação racista das agressões a jovens negros?
Vamos lá ver, isto é assim: a polícia investiga, o MP acusa, defende a acusação e os juízes julgam. É normal haver uma ou outra absolvição, é a justiça a funcionar. Sei que há recursos, quer por parte da defesa quer da acusação, e há que aguardar com toda a serenidade o desfecho desse caso.

Outro caso que voltou a pôr o racismo na agenda foi o do homicídio do estudante cabo-verdiano Giovani. Porque fez questão em ir a Bragança dizer que não se tratava de um crime com motivações racistas?
Para pôr fim a um discurso que persistia em afirmar que estava em causa um crime de matriz racial. Havia que dar passos no sentido da estabilização do clima de tensão. Hoje, continuo a pensar que contribuímos para que tal clima se desanuviasse, aliás como é possível verificar.

Uma área contígua a do discurso do ódio, é a da desinformação, das notícias falsas e da sua utilização por forças que não são exatamente, como disse, democráticas. Que monitorização é que é feita pela Polícia Judiciária destes fenómenos?

Esse fenómeno é um fenómeno difuso, até do ponto de vista do seu enquadramento. A PJ participa em vários grupos de trabalho, sobretudo num que congrega uma estrutura nacional para tratar desta matéria; representamos o Estado em alguns grupos de trabalho internacionais; e estamos preocupados com este fenómeno, sobretudo porque está em causa um ataque mais amplo, entre outros à comunicação social.

Defende, por exemplo, que devia haver um crime específico em relação às fake news ou que os crimes que já existem deviam ser aplicados nestas matérias?

Não é fácil. Temos discutido isso e não é fácil encontrar aqui um enquadramento. Pode haver um enquadramento na questão dos crimes de difamação, de honra das pessoas, mas isso não alberga tudo o mais.

Do ponto de vista há, de facto, esse combate nas redes sociais até para procurar influenciar resultados eleitorais, a formação de vontades. Isso é parte de uma luta silenciosa que é feita muitas vezes através da cibermanipulação. No cruzamento de vontades de quem está motivado para ter hegemonia, apresenta-se como uma vantagem.

Entendemos todos os que nos preocupamos com o assunto, que é muito relevante discutirmos isto e é muito relevante todos trabalharmos no sentido de termos uma imprensa e órgãos de comunicação social livres e independentes, livres do poder político, do poder económico e que possam fazer o seu trabalho de escrutínio em prol da defesa da democracia e do Estado de direito democrático.

Esta entrevista é também uma homenagem ao Diário Notícias, um jornal histórico com mais de um século e meio e que tem um acervo patrimonial único no país, que fez muito pela democracia.

O que não fez nenhum bem à democracia foram processos como Tancos. A imagem que dá do país com polícias à luta, de uma certa desorganização ao mais alto nível, prejudica a imagem do Estado e da democracia...
Permita-me discordar frontalmente daquilo que diz. Prestava-se era um mau serviço à democracia se não fosse feito o que foi feito. Aceitar-se um estado dentro do próprio Estado, em que tudo se resolve à margem da lei, à margem daquilo que decide e orienta o titular da ação penal, falsificando, escamoteando, como se houvesse um poder paralelo. Isso é que era perigoso para a democracia.

Como já disse na Assembleia da República, da parte da Polícia Judiciária não houve nenhuma guerra, Partilhámos aquilo que sabíamos. A partir do fatídico dia 4 de julho de 2017 em Tancos [data da visita do PR], disse-se aquilo que não se devia ter dito, e a partir daí foi um desvario que inviabilizou que a investigação pudesse ser desenvolvida com maior rapidez.

Criaram-se muitos obstáculos à investigação criminal. A partir daí nós entendemos que para seguirmos o nosso caminho tínhamos de seguir, de alguma forma, sozinhos. Assim fizemos e agimos e, hoje, com o distanciamento devido, não me arrependo da decisão unilateral e exclusivamente minha que foi seguida.

Eu vou contar aquilo que nunca contei a ninguém: quando o furto ocorreu, em 27 para 28 de junho de 2017, o então diretor da Polícia Judiciária Militar (PJM), o senhor coronel Luís Vieira, contactou-me a mim e ao anterior diretor nacional a pedir ajuda. Era de facto um furto complicado, de material complicado, material bélico, numa instituição do Estado, e foi designada a unidade que eu dirigia para prestar esse apoio.

Escolhi as pessoas que eu entendi mais capacitadas, pessoas que tinham cumprido o serviço militar obrigatório, pessoas de fácil relacionamento, para apoiar a investigação que a PJM tinha posto em curso. Estivemos preocupados sobretudo com áreas técnicas, demos esse apoio.

Havia a necessidade de registarmos rapidamente no Sistema de Informações Schengen os números dos equipamentos e do material furtado, não fosse ele aparecer noutro território e não se saber de onde é que era. Passados dia e meio, dois dias, eu fui alertado pelos colegas do Porto de que tinham uma investigação que podia ter que ver com Tancos, e cujos titulares eram os magistrados do DCIAP.

Inteirei-me rapidamente se, de facto assim era e chegámos à conclusão que tinha toda a probabilidade de estarmos a falar da mesma situação. Falámos com a PJM. Nesse dia ou no dia seguinte, a senhora Procuradora-Geral, face ao enquadramento jurídico que o diretor do DCIAP tinha feito, entendeu que a investigação devia ser afeta à PJ.

Internamente - a investigação estava sediada no Porto - foi o anterior diretor nacional que me pediu, a mim, para encabeçar esta investigação, porque estava aqui no DCIAP, não havia necessidade de andar para a frente e para trás, a região onde o facto tinha ocorrido era aqui na zona centro, a unidade que eu dirigia tinha competência a nível nacional.

Eu tinha um relacionamento saudável com os profissionais da PJM, tanto assim que o coronel Luís Vieira me ligou a pedir ajuda. Isto que fique bem claro. A decisão foi do titular de ação penal. A PJ não pediu nenhuma investigação, eu mesmo não pedi nenhuma investigação, e estávamos de boa-fé a trabalhar com a PJM e a prestar o nosso apoio, como sempre fizemos, e como continuámos a fazer após esses factos. Da nossa parte nunca houve guerra nenhuma, partilhámos aquilo que sabíamos.

Quando é que começaram a sentir a "repulsa" por parte da PJM, usando a expressão que utilizou na comissão de inquérito?
A repulsa foi um termo que eu utilizei porque foi verdadeiramente aquilo que eu senti. Senti que, contrariamente a muitas outras situações ao longo da minha carreira em que conseguimos levar a bom porto inúmeras investigações em franca colaboração e partilha com as outras forças e serviços de segurança, nesse caso não era possível. Tenho a ideia de que foi o único caso em que isso sucedeu.

Pensámos, pensei eu, que outras pessoas pensavam elas próprias que havia dois mundos distintos e que não se podiam tocar. Isso é inaceitável. A justiça é só uma. Nós somos uma única democracia. Temos, de facto, códigos diferentes, mas somos uma única democracia em que na investigação criminal tem de haver respeito, tem de haver silêncio, às vezes tem de haver secretismo.

O ex-diretor da PJM invocou "interesse nacional" para as suas ações. Compreende esta justificação?

Há uma acusação, há uma decisão instrutória que está em curso e há o respeito pela presunção de inocência das pessoas. Na altura própria, seja ela qual for, poderei prestar outro tipo de esclarecimentos.

Que importância teve para o inquérito ao furto, a investigação à recuperação do material? Esta processo contribuiu para a captura dos suspeitos do assalto?

Contribuiu muito para o esclarecimento do furto. Reparem que a partir do dia 4 de julho de 2017, com a visita a Tancos, a investigação ficou literalmente destruída. Os suspeitos ficaram a saber que eram suspeitos, que já estavam a ser investigados, sabiam que era uma questão de tempo.

Tudo aquilo que nós PJ e a PJM podíamos ter resolvido num mês e meio, dois meses, se tivéssemos de facto trabalhado em conjunto - e aí sim, em defesa dos interesses do coletivo, da legalidade, do respeito pela democracia - demorou muito mais tempo.

A investigação ficou seriamente afetada, com tudo aquilo que foi dito, com todos os atos que colocaram em causa a gestão do inquérito e a legalidade. Mas acabámos por encontrar o rumo, quer para a farsa, quer para o furto.

Nos últimos tempos temos assistido a um conjunto de homicídios muito violentos, com autores próximos ou mesmo da família. Há algo a mudar nos homicídios? Os portugueses estão mais cruéis?

O que se nota é uma maior mediatização dos casos. Há um acompanhamento por parte da comunicação social durante vários dias e uma capacidade que antes não era conhecida. De facto, nos últimos meses houve aqui um conjunto de homicídios com enorme exposição mediática, mas isso já aconteceu no passado. Estou a recordar-me, por exemplo, do caso da praia do Osso da Baleia, entre outros que causaram bastante alarme público. Não houve nenhuma alteração de padrão.

Mas os homicídios estão a aumentar? Ainda não é conhecido o Relatório Anual de Segurança Interna de 2019, mas pode adiantar-nos esse balanço?

Sim. Há um ligeiro aumento quando comparado com 2019, mas se tivermos por comparação um período de análise mais longo poderemos dizer que não se registaram grandes alterações. Os números de 2019 são equivalentes aos anteriores, quer em relação aos homicídios tentados, quer aos consumados. Houve, de facto, um pico nos tentados, mas recuando a uma análise de cinco anos não há nada de significativo.

Apenas algumas oscilações. Quanto à maior ou menor violência, historicamente têm sido praticados crimes bárbaros, muitas vezes de proximidade, envolvendo sentimentos extremos de amor, de paixão, de ódio, de raiva, de vingança. Sempre sucedeu. Todavia, nos últimos tempos assistimos à prática de inúmeros crimes, cometidos com requintes de grande violência e que se encontram esclarecidos.

É sabido que Portugal é um dos países mais seguros do mundo e isso tem um grande significado para nós, porque é importante para o país que assim seja. É o resultado do trabalho de todas as forças e serviços de segurança no âmbito das suas competências.

Significa também que o modelo de Segurança Interna e a estrutura de Investigação Criminal estão consolidados. O sistema de investigação criminal vem de 2000, era ministro da Justiça o atual primeiro-ministro e secretário de Estado o atual ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita e nosso Diretor Nacional um Homem de enorme visão e envergadura ética e moral e com grande consistência jurídica: o dr. Luís Bonina um magistrado do Ministério Público.

O modelo está, portanto, consolidado, e permite que Portugal tenha esta posição de que tanto nos orgulhamos, no que a tranquilidade e a ordem diz respeito. Isto é muito importante, não só para a segurança das pessoas e para a sua liberdade, mas também para um eixo muito importante para a economia nacional, que é o turismo.

De que forma é que a atual instabilidade pode alterar essa tranquilidade?
Pode haver alguma oscilação. Mas é preciso lembrar que nos momentos de crise que o país já atravessou, como no período da intervenção da troika, foi possível debelar parte da atividade criminal. Quero dizer que pobreza não é sinónimo de criminalidade. Os pobres por serem pobres não cometem crimes. Isso tem de ser desmontado. O que eu gostaria de dizer, quer enquanto responsável por uma instituição quer como cidadão, era que todos rapidamente voltassem a trabalhar. Com todos os cuidados, com todas as defesas, o país tem de voltar a funcionar.

ETA, jihadistas portugueses e marroquinos, espião do SIS, homicídios (rei Ghob), Tancos, assaltos a multibancos, só falando de processos mais recentes na sua carreira de mais de 20 anos na PJ... Qual foi para si o caso mais desafiante?
O desafio nunca é individual, é coletivo. Ninguém pense que nesta atividade alguém faz alguma coisa sozinho. Desses casos, nenhum deu tanta luta como muitos dos crimes de rapto que investigámos. São casos dramáticos.

Em todos crimes de rapto, temos um primeiro momento que é libertar a vítima com vida e no mais curto espaço de tempo. São casos dramáticos. Tivemos muitos casos com ligações internacionais, como Espanha, com pedidos de resgaste e pedidos de pagamento em países terceiros.

Recordo um caso em que nós libertámos, na altura da Páscoa de 2008, um conhecido empresário espanhol, em que foi pedido um resgate elevadíssimo, astronómico mesmo. Trabalhámos em conjunto com os nossos camaradas espanhóis e conseguimos, ao fim de muito tempo libertar a vítima.

Estive no momento seguinte dessa libertação, vi um filme que temos e que nunca divulgámos, com a pessoa acorrentada, com uma venda, e a alegria que é uma pessoa naquelas circunstâncias poder fazer uma festa à cara de um polícia.

É uma recompensa que muitas outras pessoas e polícias não tiveram. Felizmente a Unidade de Contraterrorismo, antiga DCCB, é uma unidade com grande experiência neste tipo de crimes. Conseguimos sempre retirar com vida, às vezes maltratados, as vítimas raptadas.

Não há maior alegria e sentido do dever cumprindo! Imaginem: 15 dias de stress, em que se dorme mal ou não se dorme ou descansa, dezenas de pessoas a trabalhar articuladamente vigilâncias escutas telefónicas, seguimentos, informação bancária, cooperação internacional, utilização de meios tecnológicos especiais, enfim...

Mas gostava de realçar um caso que foi muito especial para mim. Em 1999 fomos investigar à Guiné-Bissau o homicídio de um grande democrata, Nicandro Barreto, que foi ministro da Justiça e PGR naquele país. A nossa intervenção permitiu não branquear uma investigação, em favor da atividade política de um golpista de Estado, Ansumane Mané, e que ia levar à prisão e, provavelmente, à morte de relevantes atores políticos da Guiné-Bissau, designadamente do ex-primeiro-ministro, Manuel Saturnino da Costa. A minha equipa passou um muito mau bocado nesse período.

E qual é a sua maior frustração?

Não tenho nenhuma frustração. Nem todos os casos se esclarecem e temos que seguir em frente sempre com o sentimento do dever cumprido e de que nos esforçámos até ao limite do que era possível.

A proatividade e a antecipação é um modelo que eu gostaria de trabalhar - e vamos ter uma polícia com maior capacidade neste patamar. Implica maior informação, trabalhar de modo diferente. Estamos a fazer esse caminho. É evidente que quando temos criminalidade participada temos de responder ao imediato. E aí esgotamos parte dos meios. Mas é uma frustração momentânea que vamos ultrapassar com outro modelo de trabalho.

É um tema que também causou polémica e surpresa foi a situação das mulheres na PJ, que têm sido a maioria nos últimos cursos. Porque nunca responderam às preocupações do sindicato sobre as dificuldades com as investigadoras?

Isso é um não tema. As mulheres são bem-vindas à PJ, são extraordinárias, têm uma grande capacidade de organização, pensam às vezes diferente. Temos um grande orgulho nas mulheres que temos na Polícia Judiciária Tenho várias dirigentes propostas por mim. O que conta é a competência e a capacidade de trabalho. A discussão, estéril, foi uma má interpretação do que uma dirigente sindical disse. Ela própria é uma investigadora de grande fibra e garra... é um assunto resolvido. E é com isso que eu conto. Uma instituição que pense o coletivo. Que respeite e se faça respeitar. Uma polícia evoluída e com grande capacidade tecnológica.

Mas essa é uma realidade - a PJ terá uma maioria de mulheres no seu quadro de inspetores... estão preparados?

É um não problema. Um dia a PJ pode ter mais mulheres. Historicamente não foi assim. Mas isso acontece em todas as áreas e organizações. Um dia todos os que lideram a instituição podem ser todas mulheres. Como podem ser todos homens. Não é um problema. O que nos move é escolher os melhores em cada momento.

Eu trabalhei 23 anos na unidade que mais lidou com o crime violento, a DCCB. E as mulheres nunca ficaram para trás. Uns adaptam-se melhor numa área outros em outras, o que temos de procurar é o enquadramento dos que oferecem melhores garantias a cumprir a missão. Não há aqui nenhum garrote ideológico seja ele qual for. Concluindo: temos muito orgulho nas mulheres que estão nos nossos quadros; prestam um grande serviço ao coletivo.

Como quer ver a PJ no final do seu mandato e o que permite acreditar nisso?
Quero ver uma polícia mais motivada porque percebe agora que os meios estão a regressar. As pessoas estão mais confiantes. Somos uma instituição em que o cidadão confia. O que permite acreditar nisso é este reforço da capacitação de meios humanos, tecnológicos, materiais e instrumentos legais. Tudo isso vai permitir ter uma polícia pequena, mas muito evoluída e capacitada e repleta de profissionais com grande conhecimento. É esse o meu desígnio, de gente humilde que procura fazer muito.