O decreto de Trump contra as redes sociais é apenas uma birra sem efeito legal
by Rui MacielTudo sobre
Você já deve estar acompanhando a história, mas é bom lembrar: na última terça-feira (26), o presidente dos EUA, Donald Trump, teve duas de suas publicações - sobre alegações infundadas de fraude nas votações por correio - marcadas como "potencialmente enganosas" (leia-se fale news) pelo Twitter. O fato, claro, enfureceu o mandatário norte-americano, que acusou plataformas digitais de "calarem as vozes conservadoras). Com isso, na última quarta-feira, ele ameaçou as empresas de redes sociais com o endurecimento de uma lei federal, que, há muito tempo, protege não apenas o Twitter, mas também Facebook e Google (principalmenteo YouTube), de serem responsabilizados pelo material publicado pelos seus usuários.
E, na quinta-feira, Trump cumpriu a ameaça. Ele assinou uma ordem executiva que exige que a Comissão Federal de Comunicações (FCC) revise o significado da Seção 230, presente na chamada Lei de Decência das Comunicações, de forma que deixaria as redes sociais muito mais vulneráveis a processos judiciais - e, claro, um belíssimo aumento nos gastos dessas empresas.
Mas essa medida de Trump pode, de fato, balançar os alicerces das redes sociais? Ou, melhor dizendo, ela é legal do ponto de vista jurídico?
O pilar da internet nos EUA
Essa medida do presidente dos EUA jogou os holofotes sobre a "tal" Seção 230. É ela quem define, nos EUA, que as plataformas (Twitter, Facebook, Google, etc) sejam "tratados como publicadores ou oradores de qualquer informação fornecida por outro provedor de conteúdos de informações". Em outras palavras, isso impede que essas plataformas, que dependem de conteúdo de terceiros, possam funcionar sem o risco de serem processadas. Ou seja, o Facebook, por exemplo, não pode ser acionado juridicamente por causa de alguém que publique um material impróprio em sua rede social. Isso, inclusive, segundo o site Gizmodo, "impede as plataformas de se responsabilizarem por suas decisões de filtragem ou moderação de conteúdo, desde que essas decisões sejam tomadas de boa fé".
O fato é que a seção 230 é um dos principais pilares de sustentação da web norte-americana. Ainda que essas plataformas moderem a publicação de certos conteúdos ofensivos - como pedofilia, ameças, terrorismo, entre outros temas - sob pena de serem responsabilizadas, o fato é que esse artigo protege as empresas de internet de serem processadas, por exemplo, pela retirada de publicações ofensivas. Sem a Seção 230, a esmagadora maioria dos sites mais acessados nos EUA desapareceria, incluindo a Wikipedia e até mesmo uma parte da Amazon.
E a ordem executiva de Trump pode mesmo afetar as redes sociais?
O site Gizmodo conversou com diversos especialistas em direito digital nos EUA para saber se essa ordem executiva de Trump. De forma geral, a página explica que o presidente norte-americano quer que a FCC - controlado por republicanos - crie uma lista de práticas que considere injustas, "deliberando que empresas que potencialmente não atendam aos padrões declarados não possam desfrutar das proteções da Seção 230 ou tenham limites impostos por este mesmo texto". Ou seja, Trump quer que as redes sociais tidas como "anti-conservadoras" na sua avaliação, sejam, de uma hora para outra, consideradas como responsáveis por aquilo que terceiros publicam.
Em outras palavras, Donald Trump quer retirar a proteção da Seção 230 de todas as plataformas que ele considera anti-conservadoras, responsabilizando-as por aquilo que seus usuários publicam. Considerando que todas as decisões da FCC são submetidas à votação - cuja comissão é de maioria republicana - dificilmente uma plataforma alinhada à visão política do presidente sofreria os mesmos efeitos de Twitter e cia.
A parte boa de todo esse absurdo é que a ordem executiva de Trump serve mais para pressionar as empresas de mídia social, do que ter um efeito legal prático. Isso porque a FCC não tem autoridade jurídica para fazer cumprir a Seção 230 e também pode se negar a elaborar as regras do mandatário norte-americano, por ser uma agência independente. Além disso, a Eletronic Frontier Foundation (EFF), uma entidade que defende os direitos na internet, afirmou em seu site que, além do decreto ser um ataque à liberdade de expressão online, "o pedido final de Trump não sobreviverá a um escrutínio judicial".
O fato é uma interpretação da FCC sobre a Seção 230 também não teria um efeito legal, já que o Congresso dos EUA nunca concedeu à entidade nenhuma autoridade. Com isso a lista de práticas que a agência criar poderia ser solenemente ignorada pelas plataformas.
Mas mesmo que a Primeira Emenda não estivesse implicada, a EFF explica que o Trump não pode usar uma ordem para reescrever um ato do Congresso. "Ao aprovar a Seção 230, o Congresso não concedeu ao Executivo a capacidade de estabelecer regras sobre como a lei deve ser interpretada ou implementada. A ordem executiva não permite ao presidente revogar o poder da lei, uma autoridade que o Congresso não lhe deu".
A entidade ainda afirma: "deveríamos ver essa ordem à luz do que a motivou: a discordância pessoal do presidente com as decisões do Twitter de notificar seus próprios tweets. Portanto, apesar dos elogios da ordem ao 'debate aberto e gratuito na Internet', essa ordem não se baseia em uma preocupação mais ampla pela liberdade de expressão e pela imprensa. De fato, este governo mostrou pouca consideração e muito desprezo a esses dois fatores. Estamos céticos de que a ordem realmente avançará nos ideais de liberdade de expressão ou será implementada com justiça".
Por fim, a EFF complementa: "Existem preocupações legítimas sobre o estado atual da expressão online, incluindo como várias plataforma poderosas centralizaram o discurso do usuário em detrimento da concorrência no mercado de serviços online, a privacidade e a livre expressão do usuário. Mas o pedido anunciado hoje [de Trump] não aborda realmente essas preocupações legítimas e não é o veículo para solucionar esses problemas. Em vez disso, representa uma tentativa violenta do presidente de retaliar uma empresa americana por não fazer a sua vontade. Isso deve ser impedido".
Já a diretora de regulamentação de plataforma do Centro de Política Cibernética de Stanford,Daphne Keller, em conversa com o Gizmodo, foi a que melhor definiu essa ordem executiva de Trump: "Parece um fluxo de consciência postado no Twitter que algum pobre funcionário teve que se transformar na forma de uma ordem executiva. Esta ordem executiva não coloca as plataformas sob um necessário debate público. Ela não é uma discussão fundamentada e, em sua maior parte, nem sequer é legislação, porque muito poucas de suas passagens têm consequências jurídicas reais.”
Aliás, recomendamos fortemente que você leia o ótimo artigo que o Gizmodo produziu sobre esse assunto. Ele está aqui (em inglês) e também aqui (em português).
As redes sociais não estão unidas
Se este decreto executivo de Trump mira, ainda que implicitamente, o Twitter, isso não serviu para que outras redes sociais se solidarizassem a plataforma comandada por Jack Dorsey.
O posicionamento do Facebook foi de distanciamento da polêmica ainda que, mais cedo ou mais tarde, a ira de Trump possa chegar também por lá. Escaldado pelo escândalo da Cambridge Analytica, que ainda faz uma perigosa sombra junto à empresa, a companhia comandada por Mark Zuckerberg preferiu não se indispor com Trump: “Acho que temos uma política diferente da do Twitter sobre isso”, disse Zuckerberg em entrevista ao canal Fox News, na última quinta-feira.
Ainda em outra declaração à imprensa, dessa vez à CNBC, o cofundador do Facebook afirmou: “Eu não acho que o Facebook ou as plataformas da internet, em geral, devam ser árbitros da verdade. Eu acho que é uma linha perigosa a seguir, em termos de decidir o que é verdade e o que não é”.
Além disso, o Facebook também segue o caminho oposto ao do Twitter, quando o assunto é propaganda política. A rede social de 280 caracteres optou por não permitir conteúdos envolvendo campanhas eleitoriais em sua plataforma. Na nova política da rede social, apenas anúncios de apoio ao registro de eleitores ainda serão permitidos. "Decidimos interromper toda a publicidade política no Twitter globalmente. Acreditamos que o alcance da mensagem política deve ser conquistado, não comprado”, afirma Jack Dorsey, CEO da rede do passarinho.
Já o Facebook não submete publicações e anúncios de cunho eleitoral ao seu programa de verificação de fatos e se recusou a limitar a segmentação de formatos com essa temática.
De qualquer forma, Dorsey já avisou em seu perfil no Twitter, que a sua rede social "“continuaria a apontar informações incorretas ou questionáveis sobre as eleições em todo o mundo”, mas ponderou: “Isso não nos torna um ‘árbitro da verdade’”.