Investigação sobre realização de eventos no início da pandemia pressiona governo da Espanha

Oposição pede saída de ministro e se aproxima de policiais; vice-premiê fala em tentativa de golpe

O fim de semana de 7 e 8 de março foi cheio de eventos em Madri. No sábado, 60 mil torcedores foram ao estádio ver um jogo do Atlético. No domingo, 120 mil pessoas participaram de uma marcha pelo Dia da Mulher. Houve também um comício do Vox, partido de ultradireita, que reuniu mais umas 9.000.

Na semana seguinte, a partir do dia 16, a Espanha entrou em confinamento. Agora, a Justiça conduz uma investigação para avaliar se as autoridades deveriam ter proibido esses atos e, assim, ajudado a conter a propagação do coronavírus, que já matou mais de 27 mil pessoas no país.

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Manifestação no Dia da Mulher em Madri, em 8 de março - Pierre-Philippe Marcou/AFP

Há semanas, a oposição de direita acusa o governo de ter demorado a agir para conter a pandemia. Essa investigação, ainda não concluída, gerou mais munição para ataques ao premiê Pedro Sánchez (PSOE). E também pode fortalecer os partidos de direita ao aproximá-los dos policiais.

O processo começou ainda em março, sob sigilo. A pedido da Justiça, a Guarda Civil produziu um relatório, no qual defende que o governo deveria ter vetado eventos a partir de 5 de março. Naquela data, o país já tinha confirmado 259 casos de Covid-19.

O material aponta que foram realizados ao menos 130 eventos no início daquele mês, e que 35 foram suspensos, parte deles após pedidos da Delegação do governo federal em Madri —o órgão tem como função coordenar serviços federais, como a segurança, na região. Daí surgiu a questão: por que o departamento buscou cancelar alguns eventos, mas não todos?

O texto também afirma que o governo não restringiu a entrada de cidadãos do norte da Itália, quando o país já tinha um grande número de casos de Covid. E cita que muitos italianos foram a Valência ver o Atalanta vencer o time local por 4x3, pela Liga dos Campeões, no dia 10 de março.

O documento da Guarda Civil, no entanto, tem alguns erros, segundo o jornal El País. O texto, que era secreto, aponta, por exemplo, que a OMS declarou a Covid-19 como pandemia em janeiro, mas na verdade isso ocorreu em 11 de março.

Pouco depois da divulgação, na segunda (25), o governo de Sánchez demitiu o coronel Diego Pérez de los Cobos, que chefiava a Guarda Civil em Madri, dizendo que houve uma "quebra de confiança".

A oposição e parte da polícia avaliam que se trata de uma retaliação. Os partidos PP e Vox passaram a cobrar a volta do coronel ao cargo e a demissão do ministro do Interior. Fernando Marlaska, que demitiu Cobos. Na sessão do Parlamento desta quarta (27), Marlaska foi xingado por deputados de "indigno", "miserável" e "traidor da Guarda Civil".

Em resposta, o governo blindou o ministro. O ataque da oposição serviu para unir a coalizão, que junta esquerda tradicional, ultraesquerda e alguns centristas, que vinham se estranhando durante a pandemia.

A preocupação do governo é que setores da polícia e da Justiça insatisfeitos com a gestão da crise se unam à oposição. Dois nomes importantes do comando da Guarda Civil renunciaram aos cargos, em protesto à saída de Cobos. Também chamou a atenção o fato de que guardas fizeram pouco esforço para conter pequenos protestos contra ministros realizados em Madri, quando o "lockdown" ainda estava em vigor.

Nesta quinta (28), houve embates entre Podemos e Vox na comissão que debate a reconstrução do país. "O Vox gostaria de dar um golpe de Estado, mas não se atreve", afirmou o vice-primeiro-ministro Pablo Iglesias. O representante do partido de ultradireita se retirou da comissão depois disso.

Em uma rede social, o líder do Vox, Santiago Abascal, disse que a legenda defende o Estado de direito, mas chamou Iglesias de vice-primeiro-ministro "de um governo ilegítimo, que caminha para ser ilegal".

A oposição defende que a investigação seja ampliada. Até agora, o único indiciado é José Manuel Franco, delegado do governo federal em Madri e filiado ao PSOE.

A Advocacia do Estado (equivalente à AGU no Brasil) questiona o fato de o processo ter caminhado mesmo durante o recesso judicial, o que teria prejudicado a defesa. Também rechaça o relatório da Guarda Civil e afirma que não havia base para limitar concentrações até o dia 14 de março.

Sánchez está no cargo de premiê desde junho de 2018, mas ficou a maior parte desse tempo como interino. A Espanha teve duas eleições em 2019, e o governo atual foi formado em janeiro deste ano, a partir da união entre o PSOE, de esquerda tradicional, e o Podemos, de ultraesquerda.

O acordo levou meses para ser construído, e a coalizão tem maioria frágil, dependente do apoio de pequenos partidos regionais, alguns deles com intenções de independência. Obter apoio em troca de ligeiros avanços na pauta separatista também poderá criar problemas para Sánchez enquanto o país vai aos poucos saindo do confinamento.