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Após confinamento, as crianças estão mais ligadas às tecnologias e muitas não querem ir à rua
Foto: Rui Manuel Fonseca / Global Imagens

Medo ou conforto? Jovens resistem a sair de casa

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Há crianças com receio do regresso à normalidade. Após desconfinamento, mais ligadas às tecnologias, muitas não querem ir à rua. Pais preocupados.

O medo do vírus e o conforto que experimentaram em casa durante o isolamento está a levar muitas crianças e jovens a resistirem, agora, a sair à rua. Com as medidas de desconfinamento, há relatos de pais em dificuldades para tirar os filhos de casa. Nas últimas semanas, a Linha SOS Criança recebeu pedidos de ajuda relacionados com o receio dos mais pequenos em regressarem à normalidade.

Maria (nome fictício) está a viver experiências opostas com os dois filhos adolescentes. Se, por um lado, o mais velho, de 17 anos, estava ansioso para voltar a sair, a estar com os amigos e a fazer atividades ao ar livre, o mais novo, de 14, está a resistir a voltar à normalidade.

"Com o início do confinamento, a minha preocupação foi manter alguma disciplina em casa, com horários para deitar, acordar, estudar". Maria deu-lhes alguma flexibilidade e manter as rotinas não foi fácil. "Eles tendiam a acordar mais tarde, a não se vestir logo", conta. Para o mais novo, o confinamento contribuiu para se refugiar mais em videojogos e séries. "Passou a ter mais tempo para isso. E não sente necessidade do contacto social. O medo do vírus fez parte, numa fase inicial, mas agora acho que ele encontrou uma zona de conforto em que pode estar no mundo dele".

Aulas em casa de pijama

No fim de semana, a família saiu para um gelado, o filho não quis juntar-se-lhe. "Preocupa-me. Sinto que, em casa, com pouco esforço, ele tem tudo à mão", diz a mãe. O ócio é, aliás, uma das explicações que o psicólogo da Pediatria do Hospital São João, Paulo Almeida, encontra para a resistência das crianças em voltar a sair à rua depois de dois meses de isolamento.

"O estar em casa num grande conforto é muito sedutor. Todos os dias há alunos a ter aulas em casa de pijama. E isto de não termos que nos levantar cedo, que nos vestir, que sair para ir às aulas, é confortável". O psicólogo do São João assume que há o risco de os jovens "se ligarem ainda mais às novas tecnologias, criando maior dependência". Mas Paulo Almeida reconhece que, para muitos, pesa sobretudo o medo do vírus. "O medo criado pela exposição às notícias, que apontavam todas no mesmo sentido: há um inimigo lá fora. Algumas personalidades mais ansiosas poderão pensar que, indo à rua, recuperando atividades, podem ser atacados por este vírus".

A teoria é partilhada pelo neuropediatra Nuno Lobo Antunes, que diz que "o medo da doença" está a levar crianças a recusar-se a sair. "É um medo real, igual ao de qualquer adulto, acentuado por não perceberem exatamente com o que estão a lidar".

O neuropediatra acredita que, para as crianças, há ainda o medo de infetar os pais ou os avós. Tudo depende, explica, da forma como os pais viveram esta fase em casa e "da perceção da ansiedade e angústia que os jovens tiveram".

Lobo Antunes defende ainda que para muitos a escola não era um sítio seguro, nomeadamente por serem vítimas de bullying, e que se sentem melhor em casa.

Manter rotinas

As crianças devem conservar hábitos de higiene e algumas rotinas que tinham quando saíam para a escola, como acordar cedo e vestir-se para assistir às aulas.

Falar abertamente

Os pais devem falar abertamente com os filhos sobre os riscos do desconfinamento e os cuidados a ter. Devem controlar a exposição às notícias e responder de forma clara às questões, encorajando-as a seguir em frente.

Descomplicar

É importante explicar que as crianças têm sintomas ligeiros, que há poucos mortos em idade pediátrica e transmitir a segurança de que, em caso de infeção, há hospitais preparados para cuidar deles.

Crianças espelham os medos dos pais

Como explica a resistência de crianças e jovens em desconfinar?

A sintomatologia das crianças não é mais do que o reflexo das dificuldades dos pais. As crianças espelham a tensão que vivem no ambiente que as rodeia. Se as famílias não conseguem filtrar as tensões, ansiedades e angústias causadas pela situação, passam para as crianças essas sensações.

Recebeu relatos destes?

Sim. As questões características de uma pandemia, que só por si são complexas, são exacerbadas junto das crianças. E há muitos adultos com esta mesma dificuldade em sair à rua, sentem receio, medo, culpa.

Há outras explicações?

Sim, há crianças que preferem estar em casa e que se aperceberam que isso lhes permite passar mais tempo no seu quarto, nos seus divertimentos. Não sei se esta fobia de sair não está associada à vontade de ficar em casa, num ritmo mais tranquilo, em que as redes sociais e os videojogos estão mais acessíveis.

Há riscos associados?

Claro. Em casa, há um descontrolo ou desregramento dos ritmos de sono, dos horários de trabalho. E a dependência que muitos jovens têm das tecnologias, o tempo que a elas dedicam e o síndrome de privação que sentem quando delas são afastados, pode associar-se a formas de dependência de drogas.

Manuel Coutinho

Psicólogo clínico e secretário-geral do Instituto de Apoio à Criança