Preferimos crer que outros doutrinam crianças, mas nós as deixamos 'livres'

Para evitar que seja doutrinação, podemos exigir que ideias e crenças sejam apresentadas com suas versões discordantes

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É um fato que sempre me surpreende: os que pensam diferente da gente foram doutrinados; os que pensam como nós não sofreram nem sofrem a influência de nenhum doutrinador.

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Luciano Salles/Folhapress

Por exemplo, chega um menino de oito anos jurando que, se ele se explodir na praça do mercado, será amado pelo profeta e obterá a devoção sexual de 40 virgens. Mesmo se você for muçulmano, achará estranho que, por conta própria, uma criança ache interessante a perspectiva de brincar com 40 virgens. Não seria mais com 40 bonecos Playmobil?

Outro exemplo. Uma turma do ensino fundamental conclama que, pelas leis do materialismo dialético, estamos nos encaminhando inelutavelmente para uma sociedade sem classes, e o partido, com seu “grande líder”, dirige nossa marcha, de tocha levantada. Você vai supor que a tal turma estude numa Coreia do Norte ou outro resto anacrônico do socialismo real, onde as crianças seriam doutrinadas até todas repetirem as mesmas palavras de ordem (que, aliás, se tornaram vazias de tanto serem repetidas).

Outro exemplo ainda. Uma criança de dez anos nos diz que só existe um Deus (o “nosso”, claro), o qual mandou o filho entre a gente para nos redimir dos pecados, mas, mesmo assim, se pecarmos (seja lá o que isso for), ele vai nos jogar no inferno para a eternidade. Será que a gente teria a cara de pau de considerar que esse menino não foi doutrinado por ninguém? E que seu sistema de crenças seria “natural”, espontâneo, isento das catequizações pelas quais passaram as crianças dos primeiros exemplos?

Suponho que meu leitor, mesmo sendo cristão, admitirá que a criança do último exemplo não é mais sábia que as outras, nem menos doutrinada.

Mas não é isso que acontece na vida cotidiana. Em geral, preferimos pensar que os outros doutrinam as crianças, enquanto a gente as deixa “livres” para construírem sua própria visão do mundo, “autêntica” e “natural”, não induzida pela influência dos adultos.

Jean-Jacques Rousseau, no “Émile”, de 1762, sonhou com uma educação em que o saber vingaria como uma flor nas crianças, sem elas precisarem de jardineiros. Os homens sonham com isso há mais de dois milênios.

Heródoto, o historiador grego do século 5º antes de Cristo, fala de uma tentativa de descobrir qual língua as crianças falariam “naturalmente”, se ninguém nunca falasse com elas. Assim, imaginava-se, saberíamos qual é a língua originária dos humanos. As tais crianças foram então criadas por cabras, sem trocas com humanos. Uma delas, enfim, disse a palavra “bekos”. A qual língua pertencia esse vocábulo “espontâneo”? Houve controvérsias inconclusivas, mas eu suspeito que “bekos”, o som que as crianças produziram, fosse a imitação do berro das cabras com a quais elas conviveram: “Bééééé”.

Tudo isso para dizer que qualquer educação é influência. Para evitar que seja doutrinação, podemos apenas exigir que ideias e crenças sempre sejam apresentadas com suas versões discordantes.

Por exemplo, nas escolas públicas, só deveria haver um ensino da religião cristã se houver um ensino equivalente de história das religiões e outro ainda, de ateísmo.

Eu, por exemplo, doutrinado no cristianismo (inevitável na escola pública italiana dos anos 1950), escutei durante anos uma das justificativas mais cretinas da religião, ou seja, a afirmação de que, sem ela, não haveria moral possível. Aguentei no osso, enquanto constatava que havia, ao meu redor, uma quantidade de cristãos para os quais eu nem emprestaria minha bicicleta e uma quantidade de ateus altamente confiáveis.

Enfim, se quisermos uma escola que não doutrine, a dificuldade não será evitar a propaganda esquerdista (cada vez mais ineficiente nos espíritos dos jovens de hoje), mas será a de encontrar a coragem para questionar nossas ideias feitas, a começar por nossas aparentes “certezas” religiosas.

Último exemplo. Um padre decidiu fazer a alegria do presidente e levou para ele um grupinho de crianças adestradas para declarar ao líder supremo que elas não gostam de “ideologia de gênero”.

Bolsonaro, cioso da liberdade dos espíritos das ditas crianças, poderia ter enxotado o tal padre a pontapés na batina —considerando que as crianças não têm a menor ideia do que é ideologia, do que é gênero e ainda menos do que é a misteriosa expressão “ideologia de gênero”.

Mas Bolsonaro gostou —do padre doutrinador e das crianças amestradas. Estamos na Coreia do Norte?