Como o Rio de Janeiro fez um dos maiores carnavais da história após a gripe espanhola
by Vitor PaivaFeito uma máquina do tempo e um espelho sobre as semelhanças entre a pandemia passada e a atual, a edição de 15 de outubro de 1918 do jornal Gazeta de Notícias oferece a dimensão do impacto da chamada Gripe Espanhola sobre o Brasil, especialmente sobre o Rio de Janeiro: “O Rio é um vasto hospital!”, diz a manchete principal. Abaixo, o jornal detalha de forma ainda mais dura (e tragicamente semelhante com o cenário do atual coronavírus) de tal impacto: “a desídia do governo”, diz uma das matérias; “Não há médicos, não há remédios”, afirma outra, enquanto uma terceira resume o sentimento: “Socorro!”. O Rio de Janeiro viu 15 mil de seus cidadãos serem mortos pela gripe em 1918, e no início do ano seguinte, quando boa parte da população já havia criado anticorpos e o vírus deixou reduziu seu poder, o intervalo para chorar os mortos foi também para a chegada da festa – e, conforme conta reportagem da Folha de São Paulo, quem viveu garante que o carnaval de 1919 foi o maior de todos os tempos.
Além do fim da primeira grande onda da gripe, o início de 1919 celebrava também o encerramento da primeira guerra mundial, e por isso motivos não faltavam para uma grande festa nas ruas cariocas. Se no ano anterior a cidade viu cadáveres se empilhando pelas calçadas e sendo recolhidos em caminhões de lixo, em 1919 o Rio foi tomado pelo carnaval – as escolas de samba ainda não existiam, mas o que se viu foi a multiplicação dos blocos, cordões, ranchos e das chamadas Grandes Sociedades, que desfilavam pelas ruas seus imensos carros alegóricos, muitas vezes feitos por artistas como Di Cavalcanti e J. Carlos.
Não foi por acaso que nesse ano o Cordão do Bola Preta, até hoje o maior bloco de carnaval da cidade, desfilou pela primeira vez. Em 1919 o carnaval começou em 01 de março.
Na boca do povo a gripe ainda era o assunto, e o carnaval veio como uma espécie de vingança da alegria: o ânimo era incontrolável, a felicidade era absoluta, todos dançavam e se abraçavam nas ruas, e nas marchinhas, músicas e nos carros, a doença também dominava enquanto tema – mas, finalmente, tratada com deboche e humor. “Quem não morreu da espanhola, quem dela pôde escapar, não dá mais tratos à bola, toca a rir, toca a brincar”, cantava os versos do poeta Bastos Tigre.
Também foi nesse ano que a cidade conheceu o lendário “Bloco do Eu Sozinho”, no qual o jornalista Júlio Silva pela primeira vez desfilou solitário com sua corneta, cantando e dançando somente para si – gesto que viria a repetir por 53 carnavais.
O clima na cidade finalmente era de alegria, libertação, flerte e desejo. Naturalmente que o carnaval de 1919 ameaçava uma possível volta da gripe, e o inspetor de saúde pública da cidade chegou a pedir que a festa não acontecesse. Em vão: a festa aconteceu com intensidade até então inédita, nesse que ficou conhecido como o maior carnaval da história da cidade – mas historiadores garantem se tratar de antiga tradição: houve grandes festas na Europa até mesmo no século XIV, com o fim da “Peste Negra”.
Não é por acaso, portanto, que um evento no Facebook intitulado “Carnaval de novo quando tudo isso passar” já possui 78 mil pessoas confirmadas: o desejo de festa parece ser um antídoto natural para o horror da pandemia atual. A Viradouro, atual escola campeã do carnaval carioca, já anunciou que, quando finalmente o próximo desfile acontecer, seu enredo será justamente uma homenagem ao carnaval de 1919. Só não se sabe ainda quando será esse próximo carnaval – e para que ele logo chegue, é fundamental que festa nenhuma aconteça agora: quanto mais ficarmos por enquanto em casa, antes será a volta da alegria.