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A Torre de Babel construída pelo governo brasileiro

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Reunião ministerial. Foto: Marcos Corrêa/PR

Na linguagem única da ‘torre’ do governo brasileiro, o que está acima de todos é o lucro e apoiar quem tem e faz mais dinheiro

Um dos conteúdos que mais marcou meu aprendizado na convivência que tive com o pastor e renomado teólogo evangélico Milton Schwantes, falecido em 2012, é a conhecida história da Torre de Babel que está na Bíblia, no livro do Gênesis, capítulo 11.

O texto é uma narrativa sobre o início da vida humana em sociedade. Um grupo desejou se tornar célebre e poderoso e planejou a construção de uma cidade e de uma torre. Ela chegaria aos céus, concentrando-se naquele lugar para dominar sobre outros. O grupo se colocaria na altura do Deus Criador e controlaria os demais.  

Aprendi com Milton Schwantes que o projeto do Criador, baseado em comunhão e harmonia em meio às diferenças, havia sido corrompido. Isso se torna evidente quando a narrativa revela o contexto do plano do grupo: “Em toda a terra havia apenas uma linguagem e uma maneira de falar”.

Uma homogeneidade imposta pelo projeto de dominação e concentração: uma única e uniforme maneira de falar e de agir; a linguagem que torna possível o poder de uns sobre outros.

Deus, então, diz segundo o texto: “‘Desçamos [Deus no plural que está, não acima de todos, mas dos projetos de poder] e confundamos ali a linguagem desta cidade, para que um não entenda a linguagem de outro”. Assim, “o Senhor dispersou o grupo pela superfície da terra e cessou de edificar a cidade e foi dado a ela o nome Babel”. 

Deus dispersou e confundiu a ideia de linguagem única, do controle e da dominação, e garantiu a diversidade. É assim que se realiza o projeto do Criador para a humanidade e não na língua única dos que se colocam na altura de Deus e contribuem para desumanizar o mundo. 

Depois de assistir ao famoso vídeo da reunião dos governantes do Brasil, realizada em 22 de abril passado, não pude deixar de lembrar da narrativa e do que aprendi sobre a Torre de Babel. 

O que era aquela reunião, senão a visão nua e crua de homens que se reúnem numa sala, uma “torre alta”, sobre tudo e todos, impondo uma única linguagem, uma única visão de mundo, sem chance para o contraditório? “Eu tenho poder e vou interferir em todos os ministérios, sem exceção”, declara o Presidente. 

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Já o Ministro da Economia diz: “Estamos agora no meio dessa confusão, derrubando a última, a última torre do inimigo. Que uma coisa é que nós vamos fazer a reconstrução e a nossa transformação econômica. A outra coisa são as torres do inimigo que a gente tinha que derrubar. Uma era o excesso de gasto na Previdência [em outra linguagem, o direito de aposentados e pensionistas, resguardados juízes e militares], derrubamos assim que entramos. A segunda torre eram os juros”. 

O oposto a este projeto deve ser descartado, eliminado, tal qual “prender vagabundos, a começar pelo STF”, além de governadores e prefeitos que adotam medidas de prevenção da covid-19. “Passar a boiada” para desmatar as florestas do Brasil com “a tranquilidade”, enquanto a imprensa e o público estão distraídos com de gente morrendo contaminada. “Armar o povo” para que, com violência e morte, pessoas imponham sua opinião e sua vontade. Estruturar um exército de sustento à torre “e pagar R$ 200 para jovens aderirem”.

Na linguagem única da “torre” do governo brasileiro, o que está acima de todos é o lucro e apoiar quem tem e faz mais dinheiro, como “repassar dinheiro público para salvar as grandes empresas porque ajudar as pequenas não dá retorno” ou “abrir cassinos de luxo agregados a turismo sexual, onde homens ricos possam se divertir e gerar muito dinheiro”. 

Desde os movimentos de 2013, os tijolos da construção desta torre começaram a ser colocados. O Brasil tornou-se terra fértil para linchamentos de pessoas públicas, para expressões abertas de racismos, machismos, xenofobismos e homofobismos. Passam a ser mais intensas as execuções sumárias por justiceiros anônimos e por agentes do Estado, que afetam pessoas mais empobrecidas, mais jovens e negras e alcançam até lideranças políticas que lutam pela justiça. 

A intolerância e o ódio a quem se opõe à “torre” se potencializam em diversos níveis, sob a capa de “liberdade de expressão”. Jornalistas, em seus espaços de trabalho, passaram a ser hostilizados e a sofrer riscos à sua integridade física porque expõem uma linguagem divergente.

A reunião dos “controladores da torre” mostrou que, em meio à pandemia de coronavírus, que já matou mais de duas dezenas de milhares de brasileiros e brasileiras – a maior parte delas, pessoas empobrecidas dependentes do sistema público de saúde -, servir à população não importa. Mentiu-se descaradamente sobre valorizar o povo, sentir cheiro de povo. Mentira! Ficou nítido que importa a manutenção do poder, o lucro e o sistema funcionando com quem realmente conta: quem faz o dinheiro multiplicar. 

Desanima? Muito! Gera sentimento de impotência? Total! No entanto, enquanto isto, há agentes de saúde dos mais diversos níveis, dando cada gota de suor para salvar pessoas! Na contramão, há gente de todas as idades e classes sociais mobilizada para agir no lugar do Estado e garantir a sobrevivência de quem não faz o dinheiro multiplicar, mas também tem direito à vida, à saúde e à felicidade. 

No lado oposto, há tanta gente atenta à necessidade de justiça com paz! Que se coloca contra as medidas de “segurança pública” que matam pessoas inocentes das periferias. Gente que se impõe ao lado das famílias enlutadas e clama por ações dignas dos agentes do Estado. Eu conheço muita gente que está mobilizada nestas frentes. Vocês também conhecem? 

Estas experiências de sensibilidade e solidariedade, em meio a tantas, não seriam uma porção da possibilidade de se humanizar um mundo desumano e se promover a paz com justiça acima de tudo? Não é uma forma de demolir a “Torre de Babel” do governo brasileiro?  De superar a linguagem única do poder autoritário, da ganância, da violência, da intolerância, do ódio, que gera pessimismo e imobiliza? 

Desafio para quem protagoniza discursos sociais, políticos e culturais (e aqui temos as religiões e as mídias): promova uma nova forma de falar e ouvir!  Quem sabe assim o testemunho de gente que atua para salvar vidas em tantas frentes, sensíveis às práticas inumanas de ódio nas diferentes versões, possa aparecer, numa primeira página, numa capa ou com destaque numa tela, para contagiar outros humanos?

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