Povão propõe paz nos estádios depois de passar a covid

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Uma boa razão para formar crença numa volta melhorada do convívio, em um futuro livre do coronavírus, é a disposição para a paz de uma das mais longevas torcidas uniformizadas do Bahia, a Povão.

O presidente Thiago Carmadelli quer liderar um movimento pacifista nas arquibancadas, como forma de encerrar a fase de torcida única, devido à determinação dos homens do Poder Judiciário para cada mando de campo ser frequentado apenas por tricolores ou rubro-negros, nunca juntos, porque a polícia não dá mais garantia.

Quem divulga a boa nova é o vice Sergio Pontes, um dos distribuidores de máscaras mais procurados do popular Condomínio Amazônia, na Avenida Paralela. Para exercitar o amor prático, Pontes vem fornecendo o produto até para rubro-negros.

Salvar a vida de seguidores do coirmão é uma boa demonstração da força de vontade deste fervoroso tricolor, perfil habitual entre os integrantes da Povão, cuja origem remonta ao agitado ano de 1976.

Naqueles idos, o Bahia perdera as duas primeiras fases – equivalentes ao primeiro turno – e já ia perdendo a terceira, quando Osni bateu para fora um pênalti, cobrado de dentro de um buraco cavado na marca da cal por Baiaco, numa imposição do árbitro Nei Serapião.

Daí em diante, o tricolor agigantou-se e ganhou os Ba-Vis necessários para levantar o até então improvável tetracampeonato: a Povão nasceu e nutriu-se deste logos spermatikos, princípio gerador do universo desta torcida, derramando-se em vibração e conhecimento dos efeitos benfazejos do ser-tricolor-no-mundo.

Reunidos na casa da grande Bahia Marlene, na Militão Lisboa, Barbalho, os fundadores ocuparam espaço no lado B das cabines de rádio, cumprindo uma tradição desde a origem do Bahia, pois foi fertilizado depois de outros clubes e a torcida nasceu pequenininha até tornar-se a maior.

Para compensar o tamanho, a torcida do Bahia nasceu também barulhenta, aspecto abraçado pela Povão, ao levar instrumentos musicais de percussão para a Fonte Nova e transmitir seu amor incondicional ao som dos timbaus, atabaques, agogôs e reco-recos.

Coube ao destino unir o herói do tetra, Beijoca, à Povão, ao pendurar as chuteiras. A presença do artilheiro – pesadelo dos vitórias – na Povão é um orgulho desta torcida uniformizada, a caminho de completar seu aniversário número 44, no próximo dia 20 de setembro.

Joel Mendes, Perivaldo, Zé Augusto, Sapatão e Romero; Baiaco e Fito; Jorge Campos, Douglas, Beijoca e Jésum. Esta escalação adoeceu o lar de rubro-negros em 1976, com o agravante do convite forçado para a comemoração do tetra em almoço oferecido por um tio tricolor, sem direito a desfeita, um acinte!

Comandada em seguidos mandatos por Rosalvo Castro, a Povão entende a violência como desnecessária, ao tentar focar, agora, no sujeito eu da modernidade, evitando enxergar-se no outro, esforçando-se para driblar a vitoriosa proposta de Sartre na peça Entre Quatro Paredes, preciosidade de 1944.

Aqui, você pode ler Entre Quatro Paredes, não morra antes! https://www.netmundi.org/home/wp-content/uploads/2017/07/Entre-Quatro-Paredes.pdf

Neste trabalho, Sartre propõe percorrermos a trilha para a construção de nosso eu a partir do outro, necessariamente, pois havia um certo incômodo neste eu puro da modernidade oriundo do racionalismo de Descartes. Entre Quatro Paredes supera o eu da primeira pessoa, capaz de impregnar até a gramática e os tempos verbais.

Daí a expressão “o inferno são os outros”, atribuída a um dos personagens, já no finalzinho da peça, muitas vezes mal lida no senso comum como algo relacionado à dificuldade de convívio: não deixa de ser, mas a frase remete, antes, à proposta de termos necessariamente de construir nosso eu pelo olhar do outro.

E nem dá para dizer pela via do outro puro, mas filtrado no imaginário de cada sujeito, pela ideia projetada do nosso eu no outro. Deixa pra lá... também me perdi nestes arrodeios... Mas veja, nesta solidão da quarentena, dá para perceber claramente não termos identidade pois não há companhia! Não há eu sem o outro!

Mesmo tentando evitar o incômodo, parece impossível escapar à arapuca, pois a construção do novo tricolor da Povão passa pela ideia de rubro-negro igualmente pacífico, como forma de produzir a trégua desejada para o bom convívio e a volta aos belos espetáculos das torcidas frequentando os mesmos Ba-Vis.

Quer melhor razão para ficar em casa, esperar passar a zorra, e voltar de boa a frequentar os estádios? Vamos todos colar com os amigos da Povão, mascarados ou não, para vencermos juntos a pandemia e curtir a volta à Fonte e ao Barradão num clima de concórdia, bem ao feitio do Senhor do Bomfim. Que tal a ideia? 

Paulo Leandro é jornalista e professor doutor em Cultura e Sociedade.