Governos respondem a surtos de Covid-19 em favelas com punho de ferro ou negligência
Melhoria de condições de higiene e ajuda financeira a famílias pobres têm que ser prioridade
[RESUMO] Autor aponta que, no cenário de rápida disseminação do novo coronavírus em bairros pobres dos países em desenvolvimento, governos insistem em ações inadequadas, como confinamento radical sem investimentos em sistemas de saúde e garantia de renda dessas populações.
Depois de devastar algumas das cidades mais ricas do mundo, a pandemia de coronavírus agora está se espalhando pelas megalópoles dos países em desenvolvimento. Áreas urbanas em expansão no Brasil, na Nigéria e em Bangladesh estão assistindo à infecção por Covid-19 crescer rapidamente.
Estudamos a fragilidade e a resiliência dessas cidades e de suas periferias urbanas, com o objetivo de incentivar decisões baseadas em dados e evidências. Considerando a letalidade causada em comunidades marginalizadas de Nova York e Londres, o coronavírus pode ter um poder ainda mais devastador em cidades mais pobres.
Particularmente preocupante é a situação das favelas: 1 bilhão de pessoas, 1 em cada 7 no planeta, mora nesses tipos de comunidade. Caracterizadas por insegurança domiciliar, moradia de baixa qualidade, acesso limitado a serviços básicos e falta de saneamento, esses assentamentos informais agregam fatores de risco que facilitam a disseminação de doenças.
No entanto, conforme nossa pesquisa aponta, muitos moradores de favelas não estão recebendo a ajuda necessária para sobreviver à pandemia de coronavírus.
O superpovoamento é uma das razões pelas quais as favelas se tornam epicentros de doenças. Assentamentos informais são, em geral, dez vezes mais densos do que áreas vizinhas de uma mesma cidade. É muito mais difícil praticar o distanciamento físico, em casa ou na rua, em locais tão densamente habitados.
Além disso, a maioria das áreas urbanas pobres ao redor do mundo sofre com a falta de água potável e banheiro privado, tornando um desafio às práticas de higiene básica, como lavar as mãos.
Para chegar ao trabalho, muitas pessoas nas favelas viajam por longas distâncias, em vans e ônibus lotados —uma necessidade daqueles com baixa renda— que são vetores perfeitos para doenças infecto-contagiosas.
Por várias razões —entre elas, pouco acesso a serviços de saúde— as pessoas que vivem em assentamentos informais também sofrem desproporcionalmente de outras comorbidades, como obesidade, diabetes e hipertensão, de acordo com uma edição especial de 2016 da revista The Lancet sobre favelas. Todos esses problemas podem agravar doenças respiratórias como a Covid-19.
O Brasil rapidamente está se tornando o epicentro global da Covid-19. No Rio de Janeiro, dentre os 6,7 milhões de moradores, ao menos 1,5 milhão vive em favelas.
Muitos dos habitantes das favelas não possuem água encanada ou mesmo recursos para comprar sabão, mas o governo brasileiro, que nega a seriedade da pandemia, pouco ajuda em sua contenção. O papel de fornecer alimentos e produtos de higiene aos cariocas mais pobres acabou sendo assumido por organizações da sociedade civil.
Centenas de moradores de favelas já foram diagnosticados com Covid-19. Porém, com cerca de 90% dos leitos de hospitais já ocupados, aqueles que sofrem de doenças graves têm poucas chances de obter atendimento de emergência adequado.
As consequências econômicas da Covid-19 também são devastadoras para as pessoas mais pobres. Nas favelas do Rio, onde os moradores costumam ganhar menos de US$ 5 (R$ 26,82) por dia, mais de 70% das famílias relatam um declínio de renda desde o surto de coronavírus, de acordo com uma pesquisa apoiada pelo Instituto Locomotiva e pela Central Única das Favelas.
O combate ao coronavírus também tem sido complicado em Lagos, maior cidade da Nigéria e epicentro da Covid-19 no país. Lagos tem população estimada de 17,5 a 21 milhões de pessoas, e cerca de três quartos estão distribuídas nas cem favelas da cidade.
Grande parte desses moradores sobrevivem com o pão de cada dia, por meio de trabalhos no setor informal como vendedores ambulantes, de material reciclado, artesanato e afins. Esses empregos não oferecem seguro-saúde, pensões ou nenhuma rede básica de segurança social.
Assim como no Rio, muitos dos trabalhadores informais de Lagos foram privados até mesmo dessa pequena renda básica durante os "lockdowns" intermitentes da capital. Ficar em casa para sobreviver a uma pandemia apenas é uma opção se você pode arcar com os custos financeiros.
Crises similares estão acontecendo em diversas megalópoles pobres pelo mundo. Em Bangladesh, por exemplo, a Covid-19 está rapidamente se espalhando pela capital Daca, residência de quase 9 milhões de pessoas, 40% das quais vivem em favelas.
A capital de Bangladesh possui cerca de 80 unidades públicas de tratamento intensivo, uma quantidade muito menor do que a necessária. Em todo o país, pouco mais de 190 UTIs atendem à população de 161 milhões de habitantes, uma quantidade per capita 47 vezes menor do que a da cidade de Nova York, depois de ter aumentado sua capacidade de UTIs.
Alguns países em desenvolvimento agiram cedo para prevenir os surtos da Covid-19 e parecem ter se esquivado da primeira onda. Com memória fresca em relação a pandemias passadas, governos, empresas e sociedade civil de Serra Leoa, Uganda e Vietnã conduziram extensos programas de teste e rastreamento e reforçaram seus sistemas de saúde, combinando-os com campanhas educacionais direcionadas.
No entanto, nossa pesquisa constata que muitos governos estão respondendo a surtos de coronavírus em favelas ou com punho de ferro ou com negligência.
Cidade após cidade, vemos "lockdowns" impostos a populações pobres sem levar em consideração os fatores que podem impedir o cumprimento desses bloqueios.
As pessoas que violam a quarentena, para, por exemplo, tentar trabalhar, correm o risco de sofrer violência policial. Conflitos relacionados ao isolamento surgiram em cidades do Quênia, Índia e África do Sul.
Essas táticas correm o risco de prejudicar a já combalida fé das pessoas nos governos, justamente quando a segurança pública é mais necessária para garantir a conformidade com as orientações de saúde.
A negligência do Estado também permite que grupos criminosos consolidem sua influência. Do Brasil ao México, cartéis, gangues e o crime organizado estão distribuindo alimentos e suprimentos médicos, aprofundando suas redes de poder.
Um novo estudo publicado no Journal of Urban Health recomenda que países em desenvolvimento, lidando com surtos de doenças infecciosas, priorizem o fornecimento de água, alimentos e materiais de saneamento para seus moradores mais vulneráveis.
Economistas desenvolvimentistas também aconselham ajuda financeira às famílias mais pobres e interromper os despejos, medidas adotadas para aliviar a crise do coronavírus em países desenvolvidos.
Para trabalhar em áreas onde a confiança no governo é baixa, todas essas medidas precisam ser reforçadas por programas incisivos de comunicação envolvendo lideranças e influenciadores em bairros, rádios, redes sociais, propaganda televisiva e mensagens de celular. Grupos como o ONU-Habitat e o Slum Dwellers International estão trabalhando com organizações locais em comunidades para alcançar pessoas onde a assistência é imprescindível.
A pandemia global necessita de respostas globais. Mas lugares como Rio, Lagos e Daca enfrentam desafios diferentes na luta contra o coronavírus do que, por exemplo, Nova York.
Portanto, a resposta do setor público de saúde também precisa ser diferente.
Robert Muggah é diretor de pesquisa do Instituto Igarapé, especializado em segurança pública.