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Coronavírus: observações “desconcertantes” da linha de frente

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O coronavírus é uma doença complexa que pegou o mundo todo de surpresa; essa parece ser uma mensagem unânime entre os médicos das linhas de frente no combate à nova condição.

Depois dos primeiros surtos, principalmente na China e na Itália, e dos primeiros artigos científicos publicados, profissionais de saúde em outros locais tentaram se preparar para potenciais ondas de Covid-19 em seus próprios países.

Com pouco tempo de antecedência e muitas incertezas, a maioria deles sabia que seria difícil e intenso, mas o que veio a seguir se mostrou ainda mais complicado do que podiam imaginar.

A compilação abaixo é uma espécie de resumo do que alguns médicos da linha de frente no Reino Unido sabem (e o que ainda precisamos aprender) sobre como a Covid-19 ataca o corpo humano:

O coronavírus é mais viral do que a pneumonia

“Acho que a maioria dos médicos esperava um vírus respiratório que causa pneumonia, algo semelhante a doenças como a gripe sazonal em uma escala muito maior”, disse o professor Anthony Gordon, consultor da unidade de terapia intensiva do Hospital St. Mary’s em Paddington, à BBC.

Se o coronavírus fosse uma pneumonia em escala maior, já seria péssimo. O que ficou claro nos dias que se seguiram ao início da epidemia, no entanto, é que essa doença afeta muito mais do que a respiração.

No caso de muitos pacientes críticos, o maior problema da doença se mostra como inflamação e coagulação sanguínea graves a ponto de atacar vários órgãos e se espalhar pelo corpo todo.

“Como médica, às vezes, parece horrível, tivemos tantos pacientes muito, muito doentes, que estão sofrendo essas profundas mudanças em seu corpo. Estamos todos lutando para entender melhor e é absolutamente essencial que façamos mais pesquisas para que possamos compreender o que está acontecendo”, afirmou Beverley Hunt, professora de trombose que trabalha em terapia intensiva em um hospital de Londres.

O enigma do oxigênio

De fato, alguns pacientes com Covid-19 chegam aos hospitais com dificuldade de respiração. Mas muitos dos indivíduos severamente afetados que foram hospitalizados não estavam com falta de ar, e sim tinham problemas em outros órgãos além do pulmão.

Curiosamente, porém, tais pessoas tinham níveis muito baixos de oxigênio, e logo não deveriam estar se sentindo tão bem, explicou Hugh Montgomery, consultor em terapia intensiva no Hospital Whittington em Londres.

Por exemplo, em alguns pacientes com Covid-19, uma medida chamada de saturação de oxigênio (a porcentagem de moléculas de hemoglobina no sangue que carregam oxigênio) chegou a 80% ou bem menos, com os indivíduos funcionando relativamente bem. Isso é alarmante; em muitos casos, os médicos tentam manter essa medida em pelo menos 90% em pacientes que não estão se sentindo bem.

Anthony Gordon acha que essa estranheza pode estar relacionada à inflamação que afeta os vasos sanguíneos dos pacientes. “Está impedindo que o oxigênio entre no sangue, e é isso que leva aos baixos níveis. Mas os próprios pulmões não são tão afetados nos estágios iniciais”, sugere.

Esse é um dos mistérios da doença que precisa ser urgentemente mais pesquisado. Precisamos saber mais para decidir quando o ventilador mecânico é necessário, por exemplo.

A falta de ventiladores era um dos maiores medos dos hospitais do mundo todo no combate ao coronavírus. Esse instrumento parece ter sido essencial para salvar alguns pacientes. Entretanto, certamente não funciona para todo mundo e os médicos ainda não sabem por quê.

Talvez o foco nos pulmões seja o caminho errado no tratamento de alguns pacientes.

“A doença parece passar por estágios diferentes e, portanto, saber mais sobre como usar os aparelhos respiratórios nesses pacientes em diferentes estágios da doença seria algo que espero que aprendamos com o passar do tempo”, observou Barbara Miles, diretora clínica de terapia intensiva no Royal Infirmary em Glasgow.

Níveis sem precedentes de coagulação

Já falamos aqui dos problemas de inflamação e coagulação nos pacientes com Covid-19.

Quando o revestimento dos vasos sanguíneos fica inflamado, é mais provável que o sangue coagule, e o SARS-CoV-2 parece levar a um sangue incrivelmente espesso em alguns dos pacientes mais graves – mais de 25% deles têm coágulos significativos, o que tem se revelado um grande problema.

“Você é muito mais propenso a ter trombose venosa profunda”, esclareceu Hunt, o que geralmente significa um coágulo de sangue na perna. “E embolia pulmonar, quando uma das tromboses venosas profundas viaja pelo corpo e bloqueia o suprimento sanguíneo para os pulmões, aumentando o problema da pneumonia”.

Os coágulos também impedem a circulação adequada do sangue para outros órgãos, como o coração e o cérebro, tornando os pacientes mais propensos a sofrer um ataque cardíaco ou um derrame.

O diferencial do Covid-19, no que se trata de coágulos, é a intensidade dos sinais de alerta.

Por exemplo, a principal proteína que forma coágulos sanguíneos é chamada de fibrinogênio. Normalmente, é encontrada em uma quantidade de dois a quatro gramas por litro no sangue.

“Aumenta um pouco na gravidez, mas o que estamos vendo com a Covid-19 é algo entre 10 a 14 gramas por litro. Nunca vi isso em todos os meus anos como médica”, afirmou Hunt.

O mesmo é observado em outra medida do risco de coagulação, uma proteína do sangue conhecida como dímero D. “Em um paciente saudável, os níveis são medidos em dezenas ou centenas. Com a Covid-19, não é incomum ver níveis de 60, 70 ou 80.000, o que é algo inédito”, complementa Montgomery.

O sistema imunológico vai à loucura

O dímero D também pode ser um sinal de infecção tão grave que leva a uma reação exagerada – e letal – do sistema imunológico.

Em alguns pacientes, os médicos observaram que a Covid-19 provocou o que é conhecido como “tempestade de citocinas”.

As citocinas são pequenas moléculas produzidas pelo corpo como parte de sua defesa contra infecções. Elas levam à inflamação, normalmente até um certo nível que é bom para você; é isso que permite que seu corpo lute contra uma doença.

“O problema é quando há uma liberação maciça desses marcadores. Isso causa inflamação ainda mais excessiva, o que leva não apenas aos problemas respiratórios dos quais falamos, mas danos aos outros órgãos do corpo”, esclarece Gordon.

É por esse motivo que alguns dos estudos com pacientes graves têm focado no sistema imune e no número de células T, importantes células sanguíneas desse sistema, que parece diminuir drasticamente durante a tempestade de citocinas. A ideia é que o aumento do número de células T possa ajudar na recuperação de algumas pessoas.

O coronavírus é uma doença multissistemica

Tudo que discutimos até agora se resume a essa afirmação: a Covid-19 é uma doença multissistêmica altamente imprevisível.

Em outras palavras, ela ataca partes diferentes do corpo humano em pessoas diferentes, e isso torna muito difícil para os médicos saberem a melhor forma de tratá-la individualmente.

“Não são apenas os pulmões, são os rins, o coração, o fígado. Também vimos músculos severamente inflamados que causam muitos danos. Mais de 2.000 pacientes de Covid-19 admitidos em terapia intensiva sofreram insuficiência renal”, disse Montgomery.

Em um número crescente de pacientes, o cérebro também se tornou motivo de preocupação. “Agora sabemos que um grande número de pacientes está tendo uma inflamação significativa do cérebro”, adiciona Montgomery. “A inflamação apresenta de tudo, desde delírio e confusão até ataques e o que chamamos de encefalite difusa”.

São muitos desafios, e a verdade é que ainda não sabemos exatamente por que e como todas essas diferentes partes do corpo são afetadas.

Quem a doença afeta e por que

Além da confusão de sintomas, há a confusão de quem é mais propenso a ser severamente afetado pela doença.

Por exemplo, é surpreendente que as condições subjacentes mais comuns envolvidas com a Covid-19 não sejam problemas respiratórios, como asma, e sim condições vasculares que afetam as veias e as artérias, como pressão alta, diabetes e doenças cardíacas, além de fatores como sexo, obesidade e idade.

De acordo com o Centro Nacional de Pesquisa e Auditoria em Terapia Intensiva do Reino Unido, mais de 70% dos pacientes internados em unidades de terapia intensiva na Inglaterra, País de Gales e Irlanda do Norte são do sexo masculino e têm sobrepeso ou obesidade. Mais de dois terços dos que morreram têm mais de 60 anos.

Esses parecem ser fortes fatores de risco, mas ainda não explicam inteiramente por que tantas pessoas infectadas têm apenas sintomas leves ou até mesmo nenhum sintoma, enquanto outras ficam perigosamente doentes muito rapidamente.

Mesmo nas unidades de terapia intensiva (UTIs), os pacientes apresentaram condições muito diferentes.

“Podemos ter um paciente na casa dos 70 anos com insuficiência respiratória que só precisa de um pouco de ajuda com um ventilador. E podemos ter um paciente na casa dos 20 anos que desenvolva falência de múltiplos órgãos muito rapidamente”, disse Ron Daniels, consultor de terapia intensiva em hospitais de Birmingham.

Estudos, estudos e mais estudos

Infelizmente, não teremos respostas corretas ou definitivas para essa nova doença enquanto não completarmos grandes testes clínicos ao longo dos próximos meses.

A boa notícia é que muitos já estão sendo conduzidos – 41 estudos de “prioridade nacional” estão sendo financiados somente no Reino Unido.

Mas não é possível apressar as coisas. Sim, já sabemos que insuficiência pulmonar é a maior causa de mortes por Covid-19 em terapia intensiva, mas não é a única e isso significa que um tratamento padrão pode não ser a melhor coisa para essa doença. Os médicos precisam criar todo um novo procedimento de como lidar com a Covid-19 dependendo de inúmeros fatores envolvidos.

“Tem sido quase medieval”, explicou Hunt. “Os melhores médicos de UTI do país tiveram que fazer palpites sobre uma doença que nunca haviam encontrado antes. Durante a maior parte do tempo, eles tiveram que basear seus medicamentos na observação, e não no conhecimento adquirido em experiências anteriores e nos dados existentes”.

“Aprendemos muito e o trabalho em equipe foi incrível, mas difícil. Às vezes cheguei em casa pensando que realmente não sabia se o que fiz hoje foi a coisa certa. Estamos tendo que aprender em alguns meses o que aprendemos ao longo de centenas de anos para outras doenças, e isso tem sido um desafio real”, concluiu Gordon, que trabalha em terapia intensiva há mais de 20 anos. [BBC]