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Coronavírus: uma janela para outros mundos | parte #2 | A chave na engrenagem

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Desde janeiro, com a notificação dos primeiros casos de Covid-19 e sua rápida disseminação na China, o país foi lentamente parando. As altas taxas de transmissão indicavam o colapso iminente do sistema de saúde e apontavam para a necessidade de uma ação rígida e coordenada de isolamento social (quarentena). A ação incluiria também o fechamento e a paralisação de fábricas e indústrias como recurso para achatar a curva de contágio.

Primeiro, a produção foi paralisada,  depois mudou-se a logística do  transporte de carga, afetando a distribuição de mercadorias para o mundo, já que o país é o maior fornecedor de insumos para a indústria mundial, incluindo peças para automóveis, componentes utilizados na indústria eletrônica e farmacêutica, entre outros. Para se ter uma ideia, em 2019, 42% dos componentes usados na indústria eletrônica brasileira vieram da China, e um total de 80%, da Ásia.

A crise catalisada pelo coronavírus começou de fato com esse efeito dominó no fornecimento de peças, e atingiu níveis ainda mais alarmantes no dia 11 de março após a OMS (Organização Mundial da Saúde) declarar a transmissão como pandêmica. No início de março de 2020, o Ibovespa acumulava uma queda de 21%, já reflexo das incerteza quanto aos impactos do coronavírus e já era  claro que as projeções de crescimento das empresas e dos países estavam superavaliadas dentro deste cenário. O mercado passou então a ajustar suas expectativas a uma queda da economia, mas ainda sem ter clareza do tamanho do impacto e da duração da crise que se anunciava.

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Cena do filme Tempos Modernos de Charles Chaplin, que lança um olhar crítico à modernidade capitalista

A dramaticidade deste cenário se intensificou ainda mais com as divergências entre a Rússia e Organização dos Países Exportadores de Petróleo , OPEP. Num movimento liderado pela Arábia Saudita, os países-membro resolveram que seria prudente fazer um corte da produção para que os preços globais não fossem  derrubados. A Rússia, para evitar uma alta do preço do petróleo estadunidense, não engrossou o coro e aumentou sua produção. A Arábia Saudita, em resposta, voltou atrás e aumentou também. Ou seja, inundaram o mundo de petróleo e derrubaram o preço da commodity. Foi o início de uma inflamada guerra de preços que fez o petróleo cair 35%,  sua maior queda nos últimos 30 anos.

Organismo econômico: um corpo doente

O mercado está nervoso! Bradam investidores e empresários pelo mundo. O sistema nasceu doente e padece agora de enfermidades crônicas, diagnosticam pesquisadores e especialistas, ao olhar para a concretização de uma morte já há muito anunciada. 

Para analisar o colapso (atual) do organismo capitalista, o geógrafo e especialista em ‘teoria da crise’ Maurilio Lima Botelho evoca o modelo de circulação sanguínea, de William Harvey (1578 –  1657 ), elaborado no século XVII. Fundamental para a teoria de François Quesnay (1694 – 1774) dos fluxos agregados. O modelo inspirou  a construção da imagem do capitalismo como um grande sistema de movimentação de riqueza, a ponto de a própria dinâmica da circulação ser tomada como algo tão ou mais importante do que a produção em si.

Coronavírus: uma janela para outros mundos | parte #1 | Colapso climático na raiz do problema

O médico britânico William Harvey foi um dos primeiros cientistas a descrever o funcionamento do sistema circulatório, mais especificamente o movimento do sangue pelo interior dos vasos sanguíneos.  Interessou-se pelos movimentos do coração de tal forma que não os coordenou com os movimentos respiratórios , deixando assim de lado o velho conceito segundo o qual se atribuía uma importância excessiva à mistura no coração das moléculas de ar com as substâncias nutritivas. 

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Na década de 1930 a produção em série industrial começou a impor um estilo de vida que se baseava no tempo de trabalho, na hierarquia do sistema produtivo, e no poder de consumo que cada camada social

Quesnay foi um médico e economista francês que  acreditava que somente a agricultura era criadora de riqueza, já que a indústria limitava-se a transformar a matéria. Assim, os indivíduos mais úteis à sociedade eram os grandes proprietários e os fazendeiros. Opunha-se às teorias mercantilistas, defendendo que os entraves à produção, circulação e consumo de gêneros deveriam ser suprimidos. Trata-se pois de uma visão defensora da liberdade econômica, expressa na máxima ‘laissez-faire, laissez passer’, símbolo do liberalismo. Suas teorias seriam desenvolvidas pelos seus discípulos (Turgot, Gournay) e viriam a influenciar o pensamento de Adam Smith.

Mas voltando à análise de Botelho, a circulação, base do pensamento liberal em suas diversas perspectivas e leituras, foi (e é) fundamental para a estrutura econômica atual, que então nascia e se consolidava. “Qualquer entrave para a circulação bloquearia as qualidades da maquinaria capitalista”, destaca. Tanto William Harvey quanto François Quesnay, eram médicos e consideravam, respectivamente, o organismo corporal e o organismo econômico como máquinas.

O geógrafo alerta também  para o fato de que estas visões serviram de suporte para uma autolegitimação burguesa que naturalizava a economia ao passo em que objetificava a natureza (e os corpos). O propósito desta corrente de pensamento seria, portanto, aferir à lógica da circulação um equilíbrio intrínseco e vitalício e atribuir a qualquer ruído ou bloqueio deste fluxo um caráter externo, de um entrave que precisa ser removido. “Com o coronavírus, se repete a constante externalização de causas. Embora seja motivo para grande preocupação, o vírus está longe de ser a razão da crise”, explica.

Segundo Botelho, somente o positivismo sedimentado como forma corriqueira do pensamento pode estabelecer um vírus como causa de uma crise econômica. A prisão cognitiva a um mundo factualmente articulado por causas e efeitos imediatos seria parte da estrutura mecânica abstrata da ciência moderna. 

Concluindo  sua análise, o autor nos  lembra que Karl Marx  utilizou o modelo de fluxos circulares de riqueza de Quesnay como referência para entender as características da circulação capitalista, baseada num movimento cada vez mais acelerado, essencial ao processo de acumulação e multiplicação do capital na forma de lucro. Dinâmica essa que só funciona num regime de produção incessante de valor através do trabalho e de ampliação e expansão contínuas desta base circulatória. 

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De maneira inteligente e sarcástica, o ilustrador polonês Pawel Kuczynski aborda questões sociais, políticas e econômicas de importância global

A partir do início do mês de  abril de 2020, a China  saiu da quarentena, ao menos parcialmente, mas passou a receber cancelamentos em massa de pedidos provenientes do  mundo todo. Outros países, entre eles os Estados Unidos, foram, um a um, adotando o isolamento social. Retomando novamente Maurilio Lima Botelho, embora a China seja o maior parque industrial do planeta, é a epidemia nos EUA que pode provocar o colapso da economia global. A demanda da maior economia do mundo é que, no limite, mantém a produção industrial chinesa.

Ilustrações do artista Pawel Kuczynski botam o dedo nas feridas da sociedade atual

A interdição inédita da atividade econômica normal na Europa, nos EUA e em um número crescente de mercados emergentes certamente causará uma contração dramática nas exportações chinesas, provavelmente na faixa de uma queda de 20-45% na comparação ano a ano no segundo trimestre, explicou Thomas Gatley, analista sênior da empresa de pesquisa Gavekal Dragonomics. As exportações da China representaram 11% do crescimento econômico no ano passado (REUTERS, 2020, online).

Uma alternativa ao desenvolvimento

No livro  “O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos”, Alberto Acosta – economista equatoriano, ex-ministro de Minas e Energia e ex-presidente da Assembleia Constituinte do Equador – propõe a tessitura de um novo paradigma social, político e econômico como contraponto ao modelo ocidental de desenvolvimento. Acosta localiza o discurso do então presidente dos EUA , Harry Truman, ao inaugurar seu segundo mandato em janeiro de 1949, como marco da institucionalização, e universalização, deste modelo, que normatiza uma visão única de progresso, galgada na supervalorização da técnica e munida única e exclusivamente do crescimento como motor e métrica. 

Depois da Segunda Guerra Mundial, segundo o economista, consolidou-se o que seria a estrutura dicotômica de dominação “desenvolvido-subdesenvolvido” (e, posteriormente, “em desenvolvimento”), que prevalece até hoje : “O desenvolvimento, enquanto proposta global e unificadora, desconhece violentamente os sonhos e as lutas dos povos subdesenvolvidos” (ACOSTA, 2016, p. 61). Citando  o sociólogo alemão Wolfgang Sachs, o economista lembra que os últimos quarenta anos podem ser denominados como a “era do desenvolvimento” Sachs  lembra que o desenvolvimento foi a ideia que orientou as nações emergentes em sua jornada a partir  do pós-guerra, tanto sob regimes democráticos como ditatoriais, e se consolidou como objetivo após a “libertação” da subordinação colonial. Hoje, quatro décadas depois, está claro que este projeto falhou, assemelha ao Mito de Sísifo, com a diferença de que nunca, de fato, chegamos perto de alcançar o topo da montanha. Muito pelo contrário.

Mito de Sísifo: faz referência ao ensaio filosófico escrito por Albert Camus, em 1941 em que ele introduz a sua filosofia do absurdo: o homem em busca de sentido, unidade e clareza em meio à complexidade do mundo. O último capítulo compara o absurdo da vida humana à missão de Sísifo, um personagem da mitologia grega que foi condenado a repetir eternamente a tarefa de empurrar uma pedra até o topo de uma montanha, sendo que, toda vez que estava quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até o ponto de partida, invalidando completamente todo o esforço despendido.

Para participar do “jogo” tivemos que aceitar as regras do “vale-tudo” em que os fins justificam os meios no caminho para o “progresso”. Tornaram-se então aceitáveis a devastação ambiental e social para alcançar o “desenvolvimento”. Como exemplo latinoamericano emblemático, Acosta cita a megamineração, que, a despeito de aprofundar a modalidade de acumulação extrativista herdada da colonização, continua adotada por diversos países como fator fundamental para o “crescimento”, quando é, na verdade, uma das causas diretas do subdesenvolvimento.

O Bem Viver: uma janela para outros mundos

Proveniente da matriz comunitária de povos que vivem em harmonia com a Natureza, o Bem Viver se propõe a revelar falhas e limitações das diversas teorias do desenvolvimento. Recuperando a visão de mundo dos povos marginalizados pela história, em especial dos povos ameríndios, e entendido como uma filosofia em construção – e universal, à medida em que está presente nas mais diversas culturas – o Bem Viver propõe a recuperação das sabedorias ancestrais, rompendo com o processo de acumulação capitalista, que transforma tudo em mercadoria e transfere as subjetividades do “ser” para o “ter”.

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A vida inteira do cacique e líder indígena Raoni Metuktire foi (e é) dedicada à luta pelos povos nativos e à preservação da Amazônia

Enquanto visão de mundo, o Bem Viver,  não pretende negar o progresso tecnológico, mas sim problematizar sua imposição e aceitação como “elemento a serviço da Humanidade” (ACOSTA, 2016, p. 65), e seu  objetivo não é a negação  da tecnologia e um retorno às sociedades primitivas, mas evidenciar e debater as contradições inerentes aos avanços tecnológicos: desigualdade social, degradação do meio ambiente, desemprego e subemprego, além de outras injustiças que “colocam em perigo a continuidade da vida no planeta” (ACOSTA, 2016, p. 65). Ou seja, os seres humanos não são sujeitos a serem vencidos ou derrotados e a natureza não pode ser entendida  como apenas uma massa de recursos a serem explorados.

Quem é Raoni, cacique que dedica a vida à preservação das florestas e direitos indígenas no Brasil

Sem negar os elementos positivos da ciência e da tecnologia, o caminho proposto é  entender e discutir as implicações  dos elementos estruturais das ideias dominantes de progresso e civilização, imaginário  que nutriu a visão do desenvolvimento como máxima irrefutável, convertendo-o em ferramenta de manutenção, renovação e expansão da lógica colonial e imperialista. Retomando o sociólogo uruguaio Eduardo Gudynas, Acosta alerta para o fato de que “não existe futuro para a acumulação material mecanicista e interminável de bens, apoltronada no aproveitamento indiscriminado e crescente da natureza” (ACOSTA, 2016, p. 66).

[Continua na próxima semana…]

Leia a primeira parte deste texto.

Referências Bibliográficas:

ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. 4ª reimpressão. São Paulo: Autonomia Literária, Elefante, 2016. 

BOTELHO, Maurilio Lima. Epidemia econômica: Covid-19 e a crise capitalista. Blog da Boitempo – https://blogdaboitempo.com.br/. 2 abr. 2020. Disponível em:

https://blogdaboitempo.com.br/2020/04/02/epidemia-economica-covid-19-e-a-crise-capitalista/. Acesso em: 8 abr. 2020.

REUTERS. Fábricas reabrem na China, mas demitem devido a impacto do coronavírus. Exame – https://exame.abril.com.br/. Disponível em: https://exame.abril.com.br/economia/fabricas-reabrem-na-china-mas-demitem-devido-a-impacto-do-coronavirus/. Acesso em: 8 abr. 2020.