Caso bem-sucedido na América Latina, Uruguai enfrenta Covid-19 sem quarentena obrigatória e uso de máscaras
Vizinho do Brasil tem conseguido manter índices baixos de casos e mortes
Apesar de não ter declarado quarentena obrigatória ou exigido o uso em massa de máscaras contra a expansão do novo coronavírus, o Uruguai tem conseguido manter índices baixos de casos da Covid-19 e leitos de UTI desocupados.
É o oposto do que tem acontecido em países como Brasil e Chile, entre outros da América do Sul, onde o número de vítimas da doença e problemas no sistema de saúde têm gerado preocupações.
Os resultados uruguaios levaram o presidente Luis Lacalle Pou a anunciar, na semana passada, o retorno às aulas presenciais a partir de junho, após dois meses de paralisação das escolas e universidades.
A decisão de permitir a volta das crianças ao colégio, disse, será dos pais ou dos seus responsáveis.
"O retorno é voluntário. Analisamos a situação com um grupo de especialistas e vimos que o risco da volta às aulas é mínimo", disse Lacalle Pou.
Em entrevista à BBC News Brasil, o ministro da Saúde, o médico neurologista Daniel Salinas, explicou que as medidas do governo são tomadas a partir das orientações de um grupo de médicos de diferentes áreas, farmacêuticos, engenheiros, matemáticos e profissionais de estatísticas, entre outros, que avaliam os riscos de proliferação do vírus e seus impactos.
"Medimos o impacto e os riscos de cada passo que damos porque somos cientes da virulência e da intensidade do contágio do coronavírus", afirma Salinas, a partir de de Montevidéu.
Até esta segunda-feira (25), o país vizinho do Brasil, que tem cerca de 3,5 milhões de habitantes e uma das maiores taxas de longevidade da América do Sul, registrava 769 casos confirmados do novo coronavírus, com 618 pessoas recuperadas (a maioria em casa) e 22 mortos pela doença.
O ministro disse que os mortos já tinham problemas crônicos de saúde quando contraíram o vírus.
A história da quarentena no Uruguai começou no dia 13 de março, quando o país registrava quatro casos da doença. O governo implementou medidas similares às de outros países da região, como a Argentina e o Peru.
Fechou fronteiras, suspendeu voos, aulas nas escolas e universidades, missas e outros cultos religiosos e eventos como jogos de futebol e shows de rock.
O país também limitou a duração e a participação de velórios: uma hora com 15 pessoas no máximo.
Desde então, permitiu que apenas um cruzeiro permanecesse nas suas águas costeiras —e por questões humanitárias, porque a embarcação, que tinha mais de 200 infectados por coronavírus, não havia conseguido ancorar em outros países. Um tripulante morreu, e os demais já estão em seus países.
Mas no Uruguai, ao contrário do que aconteceu em vizinhos como a Argentina, que aplicaram quarentena rigorosa, o comércio, de forma geral, foi liberado —excetos os shoppings.
Em abril, a construção civil voltou a funcionar, com precauções contra o vírus. Nos lugares abertos, recomenda-se que os trabalhadores usem máscaras e respeitem a distância social. No setor público, pessoas com problemas de saúde e na idade de risco para a doença receberam licença.
Logo no início da quarentena, Lacalle Pou disse que não estava em seus planos "limitar a liberdade" das pessoas e que "não desaconselhava as saídas de casa" desde que cada um adotasse medidas de precaução como o distanciamento social e o uso de máscaras.
"Mesmo não sendo obrigatória, a maioria preferiu ficar em casa e muitos comerciantes optaram por não abrir até porque as pessoas não iriam, principalmente no início da quarentena. Isso foi visível aqui em Montevidéu e também no interior do país", disse Mariana Pomies, diretora da consultoria Cifra de opinião pública, a partir da capital uruguaia.
Pesquisas da consultoria apontaram que mais de 90% dos uruguaios acataram a recomendação de ficar em casa. No entanto, os levantamentos mostraram que, para os uruguaios, "a parte mais difícil" era evitar os encontros com amigos e familiares.
No início da quarentena, 84% tinham suspendido visitas aos mais próximos, mas este índice caiu para 63%, de acordo com a Cifra.
A mesma consultoria detectou, a partir das pesquisas, que "existe consenso" dos uruguaios sobre como o país, incluindo o governo e o sistema de saúde como um todo, está encarando o coronavírus.
O senador da oposição Carlos Mahía, da Frente Ampla, disse que o Uruguai "tomou boas decisões, todos os partidos políticos apoiaram as medidas sanitárias e a sociedade acompanhou" as iniciativas.
Diferenças com o governo existem, disse à BBC News Brasil, mas na área econômica, e não no âmbito da luta contra o vírus.
Uma das primeiras medidas do país foi a criação de um fundo —'Fundo Coronavírus'— a partir do corte de 20% dos salários do presidente, de ministros, legisladores e outros funcionários do setor público.
A medida contou com respaldo da oposição. Com o fundo, foram reforçados recursos para o combate ao coronavírus.
Atenção domiciliar
Na entrevista à BBC News Brasil, o ministro da Saúde explicou que uma série de fatores e de medidas contribuíram, até agora, para os resultados positivos do combate ao novo coronavírus no Uruguai mesmo sem uma quarentena restrita.
Começando, disse, pela conscientização dos uruguaios sobre a "virulência", como ele disse, do coronavírus, e a atenção domiciliar aos casos da doença.
"Tivemos, até aqui, uma taxa de recuperação de 81%. E 86% dos recuperados foram recuperados em casa. Apenas 14% tiveram que ser internados. Desses 14%, 10% foram casos moderados ou normais. E 4% precisaram de UTI. E desses 4%, infelizmente, 2,7% faleceram", disse Salinas.
Para ele, a infraestrutura e o sistema de saúde do Uruguai também são decisivos para os resultados contra o coronavírus. No país, observou, quase 100% da população têm acesso à água potável, o que possibilita a orientação básica de higienização contra o vírus, a de lavar as mãos.
Outra grande vantagem foi a boa organização do sistema de saúde.
"O nosso sistema de saúde universal é decisivo para os resultados que registramos. Os setores público e privado estão integrados. Temos forte presença de médico de família, que inclui o atendimento domiciliar. Temos também um sistema de emergência pré-hospitalar, em todo o país, que são carros com médicos e enfermeiros que as famílias contratam. É um carro e não uma ambulância", diz.
"E a partir do nosso sistema de saúde, decidimos evitar ao máximo que um possível paciente fosse a um hospital ou a alguma clínica. Não queríamos que uma pessoa que tivesse um simples resfriado acabasse pegando a Covid-19 [num hospital ou clínica]", explica Salinas.
No Uruguai, o sistema de saúde é mantido principalmente com o desconto entre 6% e 7% dos salários dos trabalhadores e inclui a atenção aos que não têm emprego formal ou estão desempregados, conta.
Os testes de coronavírus para os casos suspeitos são feitos nas casas das pessoas. Até quinta-feira da semana passada, foram realizado mais de 35 mil testes PCR de Covid-19 no país.
O sistema de saúde foi reforçado com a telemedicina, implementada de forma oficial e nacional, a partir de março, diz, além da criação de um aplicativo com um questionário que ajuda as pessoas com sintomas a decidirem sobre procurar ou não a ajuda hospitalar.
Segundo ele, o governo multiplicou a vacinação contra a gripe na comparação com anos anteriores, outra iniciativa para evitar o congestionamento na rede hospitalar e clínica do país.
"As vacinas contra a gripe não protegem contra o coronavirus, mas evitam que as camas de UTI fiquem cheias. Casos agudos de problemas respiratórios provocam mais de 3.000 mortes por ano no Uruguai. Nossa meta é vacinar 1 milhão de pessoas. E já vacinamos 650 mil pessoas com a vacina tríplice antiviral", diz Salinas.
Ao mesmo tempo, foi realizada capacitação do pessoal da área de saúde, em parceria com seus sindicatos, para evitar que fossem contaminados. Para ele, na "batalha" contra o coronavírus, o pessoal médico é o pilar fundamental.
"Os recursos humanos são fundamentais. Não adianta ter leitos e respiradores se não temos recursos humanos. Por isso, nos preocupamos com a capacitação e junto com os sindicatos das categorias", afirma o ministro.
Asilos e presídios
Para evitar a expansão do vírus nos asilos, que têm sido apontados como os locais mais vulneráveis ao efeito devastador da Covid-19, foi intensificada a vigilância e a realização de testes de coronavírus nos idosos e nos trabalhadores desses locais, afirma o ministro.
Ao mesmo tempo, começaram a ser feitos testes aleatórios nos presídios para tentar monitorar a presença do vírus ali. O país conseguiu autonomia na produção dos insumos necessários para a fabricação dos testes PCR que precisa.
O ministro entende que as medidas, como a de atenção domiciliar, foram chave para evitar a proliferação do vírus e dar tempo para reforçar o sistema de saúde, com mais leitos de UTI, por exemplo.
A quantidade de leitos foi ampliada em 50%, disse, mas a ampliação não foi ocupada pelas vítimas da Covid-19 até esta etapa.
Recentemente, esportes como tênis voltaram a ser praticados, segundo a imprensa local.
Para o ministro da Saúde, entretanto, o coronavírus é tão desafiante e perigoso que não há motivos para celebrar os bons resultados do combate à pandemia no Uruguai.
"Ninguém pode dizer que ganhou essa batalha ou comemorar resultados. Estamos em estado de alerta permanente. Acho que ninguém no mundo vai poder se livrar em algum momento do incremento no números de casos. Por mais favoráveis que sejam os números que temos agora, o quadro pode se complicar com aberturas e reaberturas [das atividades] e com o aumento da circulação do vírus", afirma.
Sem hospitais lotados, o Uruguai vivia, mais de 60 dias após o início da quarentena voluntária, realidade diferente da observada no Brasil, no Peru e no Chile. Nos dois países andinos, a quarentena voltou a ser reforçada e incluiu toque de recolher. E o Brasil, com mais de 365 mil casos e 22,7 mil mortes, virou o segundo país com maior número de pessoas contaminadas, atrás apenas dos Estados Unidos.