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Desembargadora do Amapá espalha cartas pelo fim do isolamento

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O coronavírus explodiu no Amapá no início de maio. As mortes provocadas pela covid-19 e o número de infectados pelo novo coronavírus quase triplicaram no período. A situação ficou tão grave que o governo decretou bloqueio total das atividades não essenciais no estado, o temido lockdown. No domingo, 24, com 6.353 casos, o estado chegou às 163 mortes e alcançou a maior taxa de infectados do Brasil: 751 para cada 100 mil habitantes. Em segundo lugar está o já colapsado e vizinho Amazonas, cuja taxa de infectados é de 720 casos para cada 100 mil habitantes.

Mas os números não comovem a vice-presidente do Tribunal de Justiça do Amapá, desembargadora Sueli Pini. Contrária às medidas de isolamento social, ela tem feito o que pode para estimular as pessoas a saírem às ruas. Além de defender o fim do isolamento em entrevistas à imprensa local, ela ainda colou cartas que escreveu à mão pela capital Macapá minimizando a pandemia.

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Carta escrita pela desembargadora Pini colada na porta de uma igreja de Macapá. Foto: Reprodução

A última ação da desembargadora contra o combate ao coronavírus ocorreu em 8 de maio. Junto com o juiz Antônio Ernesto Amoras Collares e a juíza Alaíde Maria de Paula, ela negou um pedido que daria caráter de urgência à implantação de 126 leitos clínicos e de UTI por parte do estado, já previstos no plano de contingência para o novo coronavírus. Até 2 de maio, ainda faltavam 73.

De acordo com o governo do Amapá, nesta segunda 98% dos leitos clínicos e 97% dos leitos de UTI estavam ocupados com pacientes de covid-19. Segundo a Defensoria, os dados da Secretaria de Saúde são publicados com atraso e já não há leitos livres de UTI no estado.

Na ação, movida por promotores e defensores públicos, os autores alertaram o Judiciário sobre o aumento de internações desde o final de abril. No Hospital de Emergências, onde foram montados seis leitos de isolamento para casos suspeitos ou confirmados de covid-19, havia 30 pacientes no dia 27 de abril. Quatro dias depois, em 1º de maio, o número saltou para 55 pacientes. Sem espaço, essas pessoas já se misturavam com quem estava internado com outras doenças, aumentando o risco de contaminação dentro do hospital.

Para os três magistrados, nada disso era motivo suficiente para determinar urgência na implantação dos novos leitos. O juiz Collares, que recebeu o pedido do Ministério Público e da Defensoria no plantão judicial, se negou a julgá-lo, alegando que “o direito pleiteado na inicial não vai perecer se o pedido não for agora decidido” e encaminhou o caso para a juíza Paula, titular da 4ª Vara Cível e Fazenda Pública de Macapá. Responsável por julgar causas de saúde pública, a magistrada desconsiderou a urgência da situação e o risco de colapso no sistema e deu 15 dias para que o governo disponibilizasse todos os leitos prometidos.

Descontentes com o prazo tão longo, defensores e promotores recorreram da decisão, solicitando que o governo fosse obrigado a implantar os leitos imediatamente ou, pelo menos, em até 72 horas. Coube então à desembargadora Pini a decisão final, que manteve o prazo de 15 dias e sequer estabeleceu multa em caso de descumprimento. Segundo ela, “o Estado do Amapá já vem tomando as providências emergenciais para minimizar a situação dos pacientes acometidos pela covid-19″.

Devido à compreensão excessiva dos magistrados com o atraso do governo, as vagas que já deveriam estar disponíveis na rede pública de saúde seguem apenas no mundo das ideias. Mesmo o longo prazo dado pelos magistrados – que terminou neste sábado, 23 – não foi cumprido.

Clima ‘extremamente adverso ao vírus corona’

A cruzada de Pini contra o isolamento começou a aparecer ao público no início de abril. No dia 10, a desembargadora colou cartas na porta de uma igreja católica de Macapá. Ela escreveu, de próprio punho, que “nem nas piores guerras as igrejas fecharam suas portas e silenciaram”. Em outra carta, distribuída pela cidade três dias depois, a magistrada defendeu o uso de remédios de eficácia ainda não comprovada contra a covid-19 e uma tese absolutamente fajuta de que o clima do Amapá é “extremamente adverso ao vírus corona”.

Outra fake news teve como alvo a Organização Mundial da Saúde, que, segundo o texto de uma das cartas da desembargadora, teria mudado a orientação sobre a importância do isolamento social – uma informação sabidamente falsa. Além das cartas, ela deu uma entrevista no dia 14 de abril afirmando que não tem medo da morte, porque “todos vamos morrer de alguma doença”, e prometeu escrever “uma carta por dia para o governador e o prefeito” pedindo o fim do isolamento social.

A corregedoria do Conselho Nacional de Justiça não gostou. O ministro Humberto Martins intimou Pini a dar explicações sobre as cartas.

Semanas depois, a desembargadora finalmente se mostrou comovida com as mortes no Amapá – mortes de CNPJs. No dia 23 de abril, a magistrada autorizou as lojas filiadas ao Sindicato do Comércio Varejista de Móveis e Eletrodomésticos do Amapá a abrirem as portas.

Ao conceder o mandado de segurança, Pini argumentou que o estado privilegiou “certos setores do comércio, em detrimento de outros igualmente importantes” e que não observou que alguns produtos “facilmente se enquadram no conceito de primeira necessidade como fogão, geladeira e ventiladores”.

A decisão foi revogada pelo presidente do Tribunal de Justiça, o desembargador João Guilherme Lages Mendes – o segundo paciente a contrair a covid-19 no Amapá, ainda no final de março. O sindicato entrou com um recurso no STF que suspendeu a decisão de Mendes e o caso voltou às mãos de Pini, que será a relatora do processo. O governo do estado chegou a pedir que ela se declarasse suspeita para julgar o mandado de segurança, mas a desembargadora alegou que suas opiniões como cidadã não interferem nas decisões, porque seu “dever de magistrada impõe proferir julgamentos técnicos e imparciais, sob a égide do ordenamento jurídico”.

Tentei contato com ela pelo e-mail institucional e por meio da assessoria de imprensa do tribunal no dia 18 de maio para entender o que a levou a escrever cartas e falar publicamente contra o isolamento e o quanto dessa sua “crença antipandemia” influencia suas decisões, mas ela não respondeu nenhuma das minhas solicitações.

A desembargadora Pini não está sozinha na defesa irrestrita dos empresários no estado. O juiz Collares, que preferiu passar a bola das UTIs para frente, e o desembargador Gilberto Pinheiro também acumulam decisões que autorizam a abertura de lojas.

No dia 14 de abril, Collares concedeu mandado de segurança para uma loja especializada em enxoval de bebês, por considerar que se trata de um serviço essencial “visto que fornece produtos de limpeza e higiene, que são imprescindíveis para a população enfrentar a pandemia do coronavírus, não se diferenciando dos supermercados”. Mais uma vez, a liminar foi anulada pelo presidente do tribunal, Mendes.

Na semana seguinte, em 23 de abril, foi a vez de o desembargador Pinheiro conceder liminar para a abertura de uma loja de eletrodomésticos. Ele considerou as “peculiaridades da Amazônia, desde a necessidade mais simples dos ribeirinhos (…); passando por produtos mais elaborados, tais como eletrodomésticos” para tomar sua decisão. De tão absurda, a liminar foi revogada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli, que chamou atenção para o erro de providências tomadas com base em “singelas opiniões pessoais de quem não detém competência ou formação técnica para tanto”.

Assim como Pini, nenhum dos magistrados respondeu aos meus questionamentos, também feitos desde o dia 18 de maio por e-mail e por meio da assessoria de imprensa do tribunal.

De acordo com uma pesquisa divulgada pelo IBGE no dia 7 de maio, com dados de 2019, o Amapá era o estado com a menor quantidade de respiradores, a segunda menor quantidade de leitos de UTI e a terceira menor quantidade de médicos.