Diretora do 'MasterChef' roda filme sobre isolamento imposto pelo coronavírus
Marisa Mestiço se depara com o desafio inédito de dirigir remotamente os personagens do documentário
Tem hora que soa mesmo como um reality show dos mais surreais este confinamento imposto pelo coronavírus. É nessa maratona angustiante em que o cotidiano se transformou que Marisa Mestiço, diretora do “MasterChef Brasil”, capta histórias de pessoas confinadas para o documentário “A Espera”, a ser lançado até o final do ano.
O convite para o projeto de longa-metragem, da produtora Bobó Filmes, chegou agora em que a equipe do programa de culinária da Band está em home office, realizando remotamente o que é possível, como a seleção de candidatos, a fim de deixar tudo preparado para gravar os episódios assim que a quarentena acabar, na esperança de lançar a nova temporada ainda em 2020.
Mestiço está no “MasterChef Brasil” desde a primeira temporada, de 2014, e assumiu a direção-geral há dois anos.
Ela tem outros reality shows no currículo. Entrou na Band por meio da parceria com a produtora argentina Cuatro Cabezas, conhecida pelos programas “CQC” e “A Liga”, e participou da produção de “Quem Quer Casar com Meu Filho?” e “Mulheres Ricas”. A exploração das histórias dos participantes é parte do formato de produções desse tipo e, no “MasterChef Brasil”, Mestiço intensificou esse viés.
Ainda que a preparação dos pratos esteja sob os holofotes, a diretora gosta de jogar luz nos dramas paralelos à correria na cozinha, realçando a trajetória dos competidores, seus medos e ambições. Sua formação a favorece nesse campo de “realidade” roteirizada, com uma mescla de cursos de dramaturgia e de direção teatral e a faculdade de jornalismo. Mestiço também tem passagens por produtoras de cinema, como a Conspiração e a O2 Filmes.
Mesmo com as experiências anteriores, a diretora se depara agora com o desafio inédito de dirigir remotamente os personagens do documentário sobre o confinamento. Ela recebe com regularidade vídeos de 90 pessoas e ainda está aberta a novos interessados em dividir com ela suas quarentenas —para isso, divulga o número de WhatsApp (11) 9001-9008.
São histórias das mais variadas, algumas bem pesadas. “As pessoas querem desabafar, compartilhar, e às vezes dividem comigo coisas que não falam nem para quem está isolado com elas, no quarto ao lado. Já surgiram temas difíceis, como suicídio, alcoolismo, uso de drogas. Esta situação do confinamento muitas vezes nos leva a não mostrar o nosso melhor”, afirma Mestiço.
Há personagens em negação, conta, confusos entre sentir medo da pandemia e não acreditar na sua gravidade.
O caos político do Brasil entrará também em cena no documentário, e para isso Mestiço conta com uma equipe de cinegrafistas que vai às ruas.
“Escolhemos poucas pessoas, de preferência as que moram sozinhas, para evitar ao máximo o risco de contágio, e seguimos os protocolos de segurança. Também tentamos manter o distanciamento na hora de captar as imagens. Mas houve momentos em que foi difícil atuar assim, como numa das passeatas na avenida Paulista pró-Bolsonaro em que as pessoas se aglomeraram”, conta Mestiço.
Das ruas virão também registros do aumento da degradação imposto pela pandemia a regiões já marginalizadas, como a cracolândia e a praça da Sé, em São Paulo. “São pessoas que não entram nem nas estatísticas.”
Também serão retratados profissionais que precisam sair para trabalhar e que, ao voltar para casa, enfrentam a maratona de higienização, sendo que alguns ficam isolados em algum cômodo, a exemplo de profissionais da saúde.
Esse é um drama que Mestiço conhece de perto. Sua irmã é médica e está no front do tratamento da Covid-19. “Outro dia nós nos vimos de longe, ambas de máscara. Ela faria aniversário no dia seguinte e perguntei se eu poderia levar um bolo. Ela me agradeceu, mas disse que, na data, só queria ficar quieta e fazer uma oração agradecendo por estar viva e por poder ajudar algumas pessoas.”
Em homenagem aos mortos e aos profissionais do front, Mestiço gostaria de lançar “A Espera” em lugares como o Hospital das Clínicas e um hospital de campanha. Mas também em Brasília. “E seria ótimo filmar a reação dos políticos para fazer um outro filme”, comenta. Esses são planos ainda, mas o caminho natural para o documentário são os festivais e as plataformas de streaming, uma vez que a própria pandemia sufocou a indústria com o fechamento das salas de cinema.
Ao falar de suas expectativas, Mestiço retoma suas origens teatrais e lembra o dramaturgo Bertolt Brecht, que defendia a arte como instrumento de transformação social. “Ele dizia que um espetáculo deve sempre causar uma reação no público, mesmo que seja de repulsa.”