Entre boatos e fofocas, população vira fiscal de casos de coronavírus
Interiorização da Covid-19 leva a vigilância crescente de pessoas doentes e de situações contrárias ao isolamento
Diz o ditado que em cidade pequena tudo é pequeno, menos a língua do povo. A expressão ganha evidência em tempos do novo coronavírus, quando comportamentos outrora considerados normais, como festas, churrascos e almoços entre amigos e familiares, se tornaram ilegais ou, ao menos, moralmente reprováveis.
Pelo interior do país, a própria população se tornou fiscal das atitudes alheias: “Fulano está com Covid-19”, “Beltrano furou a quarentena” ou “Sicrano foi visto numa festa” viraram assuntos crescentes nas rodas de conversa, agora restritas às redes sociais e aplicativos de mensagens.
Com a doença se espalhando cada vez mais capilarmente por cidades pequenas, a mistura de informações verdadeiras com boatos parece destinada a crescer. Em especial em municípios onde são raros ou inexistentes os veículos de comunicação para checar os fatos e desmentir as fofocas.
Onde todo mundo se conhece, a identidade das pessoas é facilmente exposta, levando a episódios em que moradores são hostilizados pessoalmente ou nas redes sociais.
Foi o que ocorreu em Mallet, cidade de 13.630 habitantes no centro-sul do Paraná. No início de maio, quando foi registrado o primeiro caso de coronavírus no município, a identidade da pessoa contaminada, um homem de 60 anos, foi logo parar nos grupos de WhatsApp.
O homem foi acusado de ter levado a doença para a cidade após voltar de uma viagem a Minas Gerais.
Não demorou para conhecidos relatarem que o viram passeando pelo comércio local, sem máscara. A família passou a ser hostilizada depois de reunir pessoas para o aniversário do filho, ainda quando o morador não apresentava sintomas da doença.
A mulher do idoso afirmou que pessoas começaram a fiscalizar o isolamento da família. Com a comoção, ela se viu forçada a prestar esclarecimentos publicamente.
“A partir do momento em que o resultado deu positivo, por ser um local pequeno, divulgaram nosso endereço e informações da nossa família, diferente de outras cidades em que pessoas que tiveram casos confirmados tiveram dados preservados”, reclamou a mulher em entrevista a uma rádio local.
Não foi muito diferente do que ocorreu em Prudentópolis. Na cidade de 52.241 habitantes, também no centro-sul do Paraná, uma lista com os nomes de 150 convidados de uma festa clandestina realizada no sábado anterior ao Dia das Mães viralizou em mensagens.
Dias depois de participar da balada, uma jovem fez um exame em um laboratório particular e o laudo foi positivo para a Covid-19. Nas redes sociais espalhou-se a informação de que ela teria se infectado em Curitiba e levado a doença para o interior. Rapidamente, ela virou alvo de ataques e chacota dos moradores e teve que usar uma mídia social para se defender.
“As pessoas estão falando que eu levei o vírus de Curitiba para Prudentópolis, só que eu estava em Prudentópolis há um mês e meio. Eu cheguei em Curitiba segunda-feira [11] e fiz o exame quarta-feira [13]. Fui fazer os meus exames de rotina e aproveitei para fazer o exame do coronavírus. Não esperava por isso”, lamentou.
A publicação expôs ainda mais a história, mas permitiu que pessoas que tiveram contato com a jovem tomassem as devidas precauções sanitárias. Além disso, a prefeitura teve que agir, determinando o isolamento domiciliar por 14 dias para 94 moradores, que estão sendo monitorados pelas equipes de saúde. O município proibiu qualquer evento com mais de dez pessoas.
A jovem fez novo exame em um laboratório credenciado, na sexta-feira (22), e essa contraprova deu resultado negativo para a Covid-19.
Imagens de uma festa regada a bebidas alcoólicas também acabaram nas redes sociais e levaram a uma ação do Ministério Público contra um enfermeiro em Wenceslau Braz, cidade de 19.414 habitantes no norte do Paraná.
O homem, servidor do município, teve contato com uma pessoa infectada pelo novo coronavírus e recebeu notificação de isolamento domiciliar como medida preventiva.
Ele, porém, descumpriu a medida para participar da festa na casa de uma amiga. Por determinação da Justiça, ele deve manter o isolamento até o dia 24 de maio sob pena de multa de R$ 5.000.
Em Santa Cruz do Rio Pardo, cidade de 47.673 habitantes no interior de São Paulo, informações falsas sobre o estado de saúde de uma mulher internada no hospital da cidade com sintomas do novo coronavírus circularam no WhatsApp. Um áudio anônimo dava conta que ela ia morrer, mas tudo não passava de um boato.
A mulher, que é médica, realmente recebeu diagnóstico de Covid-19 na metade de março, após voltar dos Estados Unidos com o marido, também médico, mas seu quadro não era grave. Assim que se recuperou da doença, ela gravou um áudio para desmentir as fofocas.
Apesar de reconhecer que o caso tomou uma proporção não justificada, o secretário de comunicação local, Cláudio Antonioli, avaliou como “interessante a participação da população” em fiscalizar. “Mas aqui é mais denúncia de aglomeração, de comércio aberto. Isso o pessoal tem denunciado mais do que as próprias pessoas com o vírus”, contou.
Na sutil linha que divide privacidade e interesse público, o Ministério Público Federal do Acre se manifestou a favor da exposição em redes sociais de pessoas que promovem festas, reuniões e descumprem isolamento social.
O ato de denunciar ou expor pessoas “é protegido pelo dever republicano inerente a todos os cidadãos e pelo direito à liberdade de expressão”, afirmou o procurador Lucas Costa Almeida Dias.