Uma educação sentimental (2)
by António AraújoEu não sou eu. Evelyn Waugh não era ele, porventura por perseguir o sonho de ser Charles Ryder, a personagem principal da sua obra-prima, Brideshead Revisited/Reviver o Passado em Brideshead. A história de uma família e de uma casa, e de um homem no meio de tudo aquilo. Como ele, Evelyn, ao observar o declínio e a queda dos Lygon, senhores de Madresfield Court.
O patriarca dos Lygon, Lord Beauchamp, tivera uma trajectória fulgurante, abandonando o Partido Conservador, a que seu pai pertencia, para se tornar um dos mais activos representantes dos liberais na Câmara dos Lordes. Aí, interveio sobre os mais diversos assuntos, do comércio livre ao tabagismo juvenil, passando pela vivissecção dos animais ou pelo trabalho feminino. Foi governador da Nova Gales do Sul e, durante o seu mandato como chanceler da Universidade de Londres, esta tornou-se o primeiro estabelecimento de ensino superior a abrir as portas às mulheres, além de conceder apoios para que os alunos de menores recursos continuassem a estudar. Antes disso, Beauchamp fora eleito em 1895 mayor de Worcester, o primeiro nobre inglês a ser escolhido pelo voto para um cargo público desse género. Tornou-se um membro activo do London Board of Education e manteve a tradição, iniciada pelo seu pai, de realizar uma feira agrícola anual em Madresfield, a mesma que aparece no enredo de Brideshead Revisited e na série televisiva com o mesmo título.
Educado em Eton, Beauchamp seguiu naturalmente para Oxford, onde se tornou um dos alunos mais populares da universidade, sendo eleito presidente da União de Estudantes. Um infeliz percalço acabaria por pôr termo à sua carreira académica: uma vez, deslocou-se a uma festa em Blenheim Palace (a casa onde, por um acaso, Winston Churchill nasceu) sem a necessária licença das autoridades académicas para poder sair da cidade de Oxford. Seria expulso da universidade, o que parece ser uma pena desproporcionada e permite levantar a suspeita de que algo mais grave ter-se-á passado. Após a sua expulsão, Beauchamp teve um colapso nervoso e, à maneira das elites da época, entregou-se a um longo cruzeiro pelo Mediterrâneo e fez uma temporada de repouso na ilha da Madeira.
Regressado à vida pública, casou-se em 1902 com Lady Lettice Grosvenor, irmã do 2.º duque de Westminster, naquele que foi considerado o "casamento do ano" pelas colunas sociais. Conhecido pelo seu temperamento exuberante, Boom, como lhe chamavam os mais íntimos, distinguiu-se ainda pelas festas grandiosas e pela permanente hospitalidade (em Madresfield, chegou a receber mais de 2000 convidados por mês!), bem como pelos seus talentos artísticos, com destaque para a escultura The Golfer, exibida em 1920 na Exposição de Paris, que figurava um golfista nu e que ainda hoje está exposta na sala de fumo de Madresfield Court. Lord Beauchamp entregava-se ainda a outra arte com afinco e desvelo: os bordados. Manteve a paixão pela embroidery até ao final da vida.
As suas inclinações sexuais eram um segredo de polichinelo. Em Madresfield, quase todos os criados eram homossexuais. Um deles, que o não era, espreitou um dia pelo buraco da fechadura de uma sala fechada, observando o conde envolvido com o seu médico particular. Até os filhos conheciam a lascívia incontrolável do pai e, sempre que convidavam um amigo para pernoitar em Madresfield, aconselhavam-no a que, quando fosse dormir, se trancasse no quarto para impedir uma inoportuna visita do pater familias...
Em 1930, em visita oficial, na qualidade de chanceler da Universidade de Londres, Boom viajou até à Austrália na companhia de um criado que, notoriamente, era seu amante, facto que mereceu a repulsa das autoridades locais: antes de ir a Camberra avisaram-no de que não seria recebido se aparecesse acompanhado do seu joy-boy.
A homossexualidade de Lord Beauchamp, cada vez menos secreta, tornava-o vulnerável ao ódio do cunhado, o sinistro duque de Westminster. Ao fim de um tortuoso processo, tornar-se-ia, nas palavras do historiador David Cannadine, "the most tragic titled expatriate" daquele tempo. Não era, porém, o único a ter de fugir do país por questões amorosas ou sexuais: a histórica exploração aos gelos do Ártico de Lord Lonsdale, em 1888, não passara de um disfarce para fugir de Londres devido ao seu tórrido caso com Violet Cameron, uma actriz casada. Pouco antes, em 1885, a aprovação do Criminal Amendment Act, que agravava as penas para a homossexualidade, fez grandes estragos na aristocracia britânica: dois filhos do 8.º duque de Beaufort, por exemplo, tiveram de partir para o estrangeiro, o mesmo acontecendo com Lord Ronald Gower, que serviu de modelo a Oscar Wilde para a personagem de Lord Henry Wotton, em O Retrato de Dorian Gray (1890), e com Sir George Sitwell, que inspirou Evelyn Waugh na novela satírica A Handful of Dust, de 1934.
Em Brideshead Revisited, Lord Marchmain, interpretado na série televisiva da Granada por Laurence Olivier, é um homem caído em desgraça e ostracizado, que vive em Veneza com a sua amante, longe da pátria e da sua família. Na novela de Waugh não há um vilão. Na realidade, ele existiu - e o infortúnio de Lord Beauchamp a ele se deve. O duque de Westminster, Hugh Richard Arthur Grosvenor (Bendor), o monstro desta saga, um dos homens mais ricos da Europa, tinha razões de sobra para invejar o seu cunhado. Desde logo, porque a este coubera a honra de transportar a Espada do Estado na coroação do rei Jorge. E Boom, ao contrário de Bendor, recebera a Most Noble Order of the Garter (Ordem da Jarreteira). Mais ainda: Grosvenor, por ser divorciado duas vezes, era persona non grata na Corte.
Pior ainda: apesar das suas tendências homossexuais, Beauchamp produzira três herdeiros varões, proeza fundamental para assegurar a continuidade da casa. Grosvenor, ao invés, tivera um filho, mas morreu aos 4 anos, numa caçada à raposa, vitimado por uma peritonite. Diz-se que por culpa do próprio pai, que o obrigou a participar na caçada apesar de a criança se queixar de fortes dores abdominais, provavelmente devido a uma apendicite. Não por acaso, em A Handful of Dust, Evelyn Waugh conta a história de um filho único, muito amado por seu pai, que morre num acidente de caça. Ficção, realidade, o eterno jogo de Waug, eu não sou eu.
A par disso, e elas terão pesado talvez mais do que todas as outras, existiam também razões políticas para liquidar Lord Beauchamp: enquanto Bendor pertencia à ala direita do Partido Conservador, Boom estava a conseguir reagrupar os liberais após o dissídio entre Asquith e Lloyd George. Para percebermos a importância política de Boom Beauchamp, basta dizer que fora ele que representara o governo no Palácio de Buckingham quando, em Agosto de 1914, o rei assinou a declaração de guerra à Alemanha. Era, pois, um personagem político de peso que urgia ser abatido.
Porém, Oliver Baldwin, filho do líder dos conservadores, também era um notório homossexual. Stanley Baldwin, vizinho dos Beauchamp no Worcestershire e amigo da família (e que, sublinhe-se, sempre apoiou Boom nesta guerra sujíssima), não quereria por certo que um escândalo de homossexualidade explodisse em seu redor. Se Boom quisesse defender-se até às últimas consequências, teria o privilégio de ser julgado na Câmara dos Lordes. E se o caso entrasse no território da política e dos jornais, não seria apenas o rei Jorge V o afectado: também o chefe do Partido Conservador também correria riscos. Para muitos, a melhor solução era exilar Boom - e, com ele, o perigo de um grave escândalo.
O duque de Westminster, além do mais, era profundamente homofóbico, ainda que não fosse casto. Pelo contrário, a atracção de Bendor por raparigas menores de idade já lhe trouxera grandes dissabores, obrigando-o a ressarcir discreta mas avultadamente famílias ultrajadas. Nada disso, porém, o dissuadiria de iniciar uma campanha cega e sem tréguas contra o cunhado, em que chegou a recorrer a espiões e a detectives privados que, sem grandes dificuldades, conseguiram encontrar provas escandalosamente comprometedoras contra Beauchamp. Quando Westminster as obteve, solicitou um encontro com Jorge V, num local privado (ostracizado da Corte devido aos seus dois divórcios, Bendor não poderia ser recebido pelo monarca num local oficial).
Existem várias versões sobre a reacção do rei quando confrontado com a homossexualidade de Boom, todas elas fazendo recordar as afirmações ingénuas, e celebérrimas, da rainha Vitória a propósito do lesbianismo. Numa dessas versões, o rei Jorge terá dito, quando perante as evidências da homossexualidade de Lord Beauchamp, o senhor de Madresfield Court: "I thought people like that always shot themselves." Noutra versão, o monarca terá afirmado que pensava que as pessoas só praticavam coisas dessas no estrangeiro...
Não é claro, no entanto, se tudo não passou de uma manobra vingativa de Grosvenor, indignado pelo facto de a sua irmã ser casada com um homossexual, ou se a iniciativa não terá partido da própria Casa Real, o que tornaria o caso ainda mais pérfido. De facto, há quem sustente que foi Jorge V que convocou Grosvenor para um encontro privado, na tentativa de proteger os seus filhos, os príncipes Henrique e Jorge, visitas habituais de Madresfield Court. Jorge, um dos príncipes, tinha uma libido voraz, a ponto de se envolver com uma mulher mundana que, entre o mais, o iniciou no consumo de cocaína e morfina. Bissexual, manteve uma ligação de dezanove anos com o dramaturgo, actor e compositor Noël Coward (que, por ser um conhecido homossexual, figurava numa "lista negra" elaborada pelos nazis, com os nomes das pessoas a ser imediatamente assassinadas logo que as tropas do Reich conquistassem a Grã-Bretanha).
Pelo meio, o príncipe Jorge teria também um affaire com uma das filhas de Boom, Maimie Beauchamp, e o caso por pouco não terminou em casamento. Na década de 1920, num dia nas corridas em Ascot, Maimie fora convidada para o Royal Stand, o que era um sinal promissor de um enlace principesco. Seis meses depois, ela e Jorge eram vistos a dançar alegremente num baile de máscaras e caridade, e a hipótese de noivado perfilava-se no horizonte.
Diz-se, por isso, que a devassa da vida íntima de Boom visava também pôr termo a quaisquer veleidades matrimoniais entre o príncipe Jorge e Mary Lygon, a mais bela das filhas do senhor de Madresfield. Para a Coroa, seria catastrófico se viesse a público que o sogro de um príncipe de sangue real era um homossexual com um apetite insaciável por criados e jovens rapazes. Tudo se conjugava para um desenlace shakesperiano.
Perante as provas reunidas, o rei pediu ao solicitor general, Lord Buckmaster, que investigasse melhor a conduta de Beauchamp. Buckmaster interrogou diligentemente o pessoal de Madresfield, de Walmer Castle e de Halkyn House, obtendo testemunhos esmagadores. O monarca queria que tudo decorresse com discrição, mas Grosvenor, sempre ele, exigia uma humilhação pública.
Confrontados com a eventualidade de terem de depor contra o seu pai, os Lygon recusaram terminantemente essa possibilidade, e apenas Elmley, o primogénito, ficou do lado da mãe. O caso era tão sórdido que, muitos anos depois, já na década de 1970, o 5.º duque de Westminster determinou que os "Beauchamp Papers" fossem queimados, perdendo-se para todo o sempre os resultados das sórdidas investigações levadas a cabo pelo seu antepassado.
Em Maio de 1931, pressionada pelo irmão, a mulher de Boom, Lady Lettice, requereu o divórcio, cuja petição não esconde os aspectos mais íntimos da vida sexual de Beachamp. Além da prática da sodomia, Lady Lettice afirmou que o marido cometera "acts of gross indecency with certain of his male servants, masturbating them with his mouth and hands and compelling them to masturbate him".
No auge da controvérsia, três cavaleiros da Jarreteira deslocaram-se até Madresfield: Lord Crewe pelos liberais; Lord Chesterfield, em nome de Baldwin e dos conservadores; e Lord Stanmore, que, sintomaticamente, invocou "a mais alta autoridade do país", ou seja, o rei. Confrontaram Beauchamp, fizeram-lhe um ultimato. Nessa mesma noite, Boom chamou os sete filhos para jantarem em Madresfield Court. Disse-lhes que, numa situação como aquela, a única saída digna seria o suicídio, mas, tendo pensado melhor, optara pelo exílio. Doravante, seria um proscrito, um pária, exactamente como Lord Marchmain de Brideshead Revisited, que apenas regressa a Inglaterra para morrer, agonizante.
Sendo apresentada a versão oficial de que Boom partira para o estrangeiro para repousar e tratar dos seus problemas cardíacos, Hugh Lygon, o modelo para Sebastian de Brideshead, acompanhou o pai na travessia do canal da Mancha e, de todos os filhos, seria aquele que mais vezes esteve com ele nas suas andanças pelo mundo, fugindo do opróbrio que para sempre manchou a casa Beauchamp. Para cúmulo da crueldade, pouco antes da partida para o exílio, o cunhado escrevera-lhe uma missiva lacónica e impiedosa, num tom telegráfico, cortante: "You got what you deserved. Yours, Westminster." E, mesmo quando Beauchamp já estava longe de Inglaterra, desterrado e proscrito, quer o duque de Westminster quer a sua irmã, Lady Lettice, continuaram a alimentar um exército de espiões que devassaram aos mais ínfimos pormenores a vida de Boom e a dos seus filhos.
Sobre o caso cairia um manto de silêncio e pudor. Em 1945, Somerset Maugham, que conhecia bem os Beauchamp e com quem Hugh Lygon passaria uma temporada no sul de França, estabeleceu a ligação entre este e Sebastian Flyte de Brideshead Revisited. Alec Waugh, por seu turno, manteria a reserva e, mesmo décadas depois, quando publicou em 1975 A Year to Remember, as suas memórias daquele fatídico ano de 1931, afirmou explicitamente que o escândalo inspirara o livro do seu irmão, mas não se atreveu sequer a dizer quem era quem naquele drama, falando apenas de um "prominent Duke" como causador da tragédia dos Lygon.
O primogénito seguiria uma carreira sensaborona e convencional, mais do que previsível para um homem da sua estirpe, e passou os dias a deambular inutilmente pela Câmara dos Lordes, tal qual Bridey em Brideshead Revisited. Hughie Beauchamp, o filho mais novo, passou pela banca em Paris, onde se entediou de morte. Mais tarde, tornou-se jockey sem nenhum êxito, e, depois, treinador de cavalos de corrida. E, à semelhança do que fizera em Oxford, continuou a beber para lá de todos os limites. Como, aliás, Sebastian na novela de Evelyn Waugh.
Eu não sou eu, sempre.
(Continua; uma primeira versão deste texto foi publicada no blogue Malomil)
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.