A fé de Lula no Brasil (e no impeachment de Bolsonaro)
by Mino CartaEm tempos de pandemia, um encontro que seria caloroso só foi possível dessa forma. Lula sugeriu um vinho tinto, mas o horário recomendava um aperitivo
Ex-presidente, nesta conversa entre amigos, velhos e leais, acredita no impeachment de Bolsonaro, antes, porém, aposta no Brasil
Sempre recordo um dia de janeiro de 1980, quando minha amizade por Lula já durava havia três anos, sólida e leal, em que ele veio à minha casa em companhia de Jacó Bittar, então presidente do Sindicato de Paulínia. Dera-se que um dia antes Karlos Rischbieter, ao decidir demitir-se do Ministério da Fazenda do governo do ditador Figueiredo, ligara de Brasília para dizer da sua vontade de conhecer Lula antes de formalizar a saída. Tinha pelo presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema um respeito que era também de admiração. Vieram todos e consumiram uma garrafa de uísque. A conversa fluiu simpaticamente e todos se foram sorrindo.
Bittar era um excelente amigo, e insistia para que me filiasse ao PT nascente. Disse eu que não era da conveniência de um jornalista ligar-se a partido algum, mas não deixei de sublinhar que eu não acreditava em soluções para o País em confronto. “Eu sou um revolucionário”, proclamei. Esta é uma divergência, talvez a única que tenho com Lula. Ele está convencido de que o próprio nascimento do seu partido e sua consagração como presidente da República em 2002 representam fatos altamente revolucionários, mas não aprova a minha ideia de que a brutal disparidade social até hoje característica da situação brasileira só se resolve pelo confronto.
Discordamos com o garbo das amizades verdadeiras, embora francas. Mesmo assim não tenho dúvidas quanto às qualidades deste líder sindical que foi herói de uma reportagem de capa de minha autoria, em parceria com Bernardo Lerer, a primeira publicada pela IstoÉ, dedicada a quem enxergava como liderança forte, destinada a crescer muito. Foi uma das inúmeras reportagens que o tiveram como protagonista, sem falar das incontáveis entrevistas. Aqui no caso atual não pretendi fazer uma entrevista, mas uma longa conversa, nada além disso, entre dois amigos autênticos e como tal há de ser entendida pelos leitores, introito à reportagem de capa da edição desta semana de CartaCapital.
A íntegra de 90 minutos está no site de CartaCapital e alguns trechos estão condensados abaixo.
Entre suas falas, Lula faz referência às consequências da pandemia da covid-19 e encara o isolamento forçado como uma oportunidade para imaginar grandes mudanças, no Brasil e no mundo, na linha traçada pelo papa Francisco. “Ainda bem que a natureza, contra a vontade da humanidade, criou este monstro chamado coronavírus, porque o monstro permite que os cegos comecem a perceber que apenas o Estado é capaz de ter solução para determinadas crises.”
➤ Leia também:
- General Heleno fala em "consequências imprevisíveis" caso celular de Bolsonaro seja apreendido
- Partidos e entidades civis apresentam pedido coletivo de impeachment contra Bolsonaro
- Celso de Mello libera vídeo de reunião entre Bolsonaro e ministros
A única referência à conversa com Lula por parte da mídia não passou da tentativa de explorar semanticamente a frase com evidente propósito de precipitar uma comparação com o comportamento de Bolsonaro. Lula achou conveniente corrigir as próprias palavras, acentuou que, em lugar de “ainda bem”, a natureza, “infelizmente”, criou o monstro. Preocupação a meu ver exagerada: até o mundo mineral entende o que o ex-presidente quis dizer. Mas, na mídia brasileira, são muitos aqueles que ainda não alcançaram a inteligência da pedra.
A origem
“Eu acho que o Bolsonaro é o resultado de um processo histórico brasileiro consubstanciado em uma elite conservadora, numa elite predatória, numa elite que nunca permitiu que houvesse a alternância de poder no sentido de alternância de classe, de segmento social. (…) O máximo para ela é que um cara da elite derrote outro cara da elite, e assim eles repartam o pão produzido pelo povo brasileiro.”
“Eu estou me dando conta agora ter sido a primeira experiência histórica em 500 anos de alternância de poder. (…) Em vários momentos da história brasileira, a elite é canalha, a ponto de ter como grandes empresários os contrabandistas de escravos lá pelos anos de 1870/80. Eles ganhavam títulos de marquês, de conde. É uma podridão sem explicação teórica. (…) Me dei conta também de que a elite portuguesa, durante séculos, não permitiu a importação de livros, de sorte a garantir a presença de nove analfabetos em cada dez brasileiros. Foi assim que não aprendemos coisa alguma sobre a Revolução Francesa, a independência americana e de outros países do continente. (…) Nós somos o resultado desse espermatozoide criado pela elite dos séculos XVIII e XIX. (…) Ainda me dei conta de que os militares sempre estiveram atrás, do lado ou na frente de todos os golpes.”
O ódio ao PT
“Hoje eu compreendo a razão de tanto ódio contra o PT. Nós fizemos as coisas elementares que qualquer cidadão civilizado, defensor dos direitos humanos, faria, mesmo sendo aristocrata. Na hora de elaborar o plano da Independência, José Bonifácio fez um discurso em que queria educação para todos, queria pelo menos uma universidade, e por isso foi defenestrado.”
Público e privado
“Vejo o discurso de quem defende que há de se vender tudo que é público. Ainda bem que a natureza, contra a vontade da humanidade, criou este monstro chamado coronavírus, porque o monstro permite que os cegos comecem a enxergar que apenas o Estado é capaz de dar solução a determinadas crises. Como se deu em 2008. (…) Compreendo por que o Peru já tinha a sua universidade e o Brasil só foi ter a primeira em 1920, criada para que o rei da Bélgica, em visita ao País, recebesse um título de doutor honoris causa. (…)”
“O PT cometeu barbaridades contra o País. Colocou meninas e meninos negros na universidade, o PT criou escolas técnicas em número muito maior do que aquele das surgidas em vários séculos, o PT permitiu que o pobre pudesse comer um filé. Ou mesmo que cursasse a universidade no estrangeiro, pudesse até fazer mestrado, este é um crime que a elite não perdoa.”
Democracia
“Quando fui eleito presidente do Sindicato de São Bernardo e Diadema com 92% dos votos convoquei uma assembleia para aprovar que presidente algum poderia manter-se no poder por mais de dois mandatos. Quando, na qualidade de presidente da República, eu tinha mais de 80% de avaliação Bom/ Ótimo, surgiu dentro do PT a ideia de aprovar um terceiro mandato. Fui contra, como ocorreu no caso de Chávez, de Uribe, mesmo porque acredito que, quando o homem se acha insubstituível, dentro dele nasce um pequeno ditador.”
“Eu acredito no impeachment. Acho que dá para resolver o problema político sem confrontos”
As revelações do Intercept
“O processo ainda vai merecer maturação. É preciso ter claro que candidato tantas vezes, não houve quem conseguisse me incriminar. O que foi conseguido foi em 1989, quando se divulgou que eu tinha uma filha fora do casamento. Olha, eu não era casado quando a Lurian nasceu, eu era viúvo.”
“Quando decidiram dar o golpe na Dilma, também acharam que seria preciso criar um instrumento para impedir minha participação como candidato na eleição de 2018. Sérgio Moro, na oportunidade, visitou as redações de Veja, IstoÉ, Época, da Globo e das demais televisões, da Folha de S.Paulo, do Estadão, do Globo, para garantir que todas as denúncias contra mim se tornariam verdade junto à opinião pública. (…)”
“Quando alguém era acusado por Moro, ao chegar o dia do julgamento já estava condenado. Nessa ótica tudo se explica, a mídia em geral favoreceu o pseudotribunal curitibano. Cheguei a brigar com vários amigos meus quando decidi ir à Polícia Federal, porque precisava provar que tipo de canalhas são Moro e Dallagnol. (…)”
“Eu sei o que a Globo fez contra mim, eu sei tudo que foi maquinado e quantas mentiras se transformaram em verdades, bem como quantas verdades foram omitidas (…) quando o Intercept, por seis meses, publicou suas revelações, elas não mereceram da mídia uma única vírgula. (…) A Lava Jato foi um projeto de poder, elaborado dentro do Departamento de Justiça dos EUA.”
O petróleo e o pré-sal
“Washington nunca aceitou a ideia de a gente fazer a lei da partilha quando descobrimos o pré-sal. Não era possível que os estadunidenses vissem um país que historicamente tinha sido quintal deles fizesse a maior descoberta de petróleo do século XXI. Para os Estados Unidos é um projeto de poder militar. (…) A Alemanha perdeu a Segunda Guerra Mundial por não ter combustível. É o que eles entendem. (…) Logo depois do anúncio do pré-sal, voltaram a pôr em funcionamento a IV Frota, parada após a Segunda Guerra Mundial. E, pasmem, as nossas Forças Armadas indicaram um militar brasileiro para a subchefia da Frota. (…)”
“Mas Bolsonaro entende que um militar pode ser ministro da Saúde. É triste, eu acho que um fardado pode ser muito competente, foi visível para mim que, durante a ditadura, o general Golbery era inteligente e que Geisel era nacionalista. (…) A tarefa maior de um general que honra as cores da bandeira do seu país é defender a soberania nacional contra inimigos externos. (…) Temos um presidente que bate continência para seu colega estadunidense e para a bandeira americana.”
O sindicalismo hoje
“A classe trabalhadora que você conheceu em São Bernardo não existe mais daquele jeito. Em 1980, a Volkswagen tinha 40 mil operários, hoje tem 9 mil. Mudou o trabalhador, mudou a forma de exploração dele e enfraqueceram-se demais os sindicatos. Com a reforma sindical de Temer, o sistema enfraqueceu ainda mais, por obra do trabalho informal, do trabalho intermitente, da carteira verde-amarela. (…)”
“Hoje, o pessoal está trabalhando de Uber, está entregando pizza de bicicleta. Aquele trabalhador profissional de carteira assinada, seguridade social, férias, décimo terceiro, está acabando. (…) Todas as conquistas da classe operária do século XX perdem-se no século XXI. (…) Quando a pandemia terminar, acredito que surgirão condições para apontar o caminho de um mundo novo.”
“A concentração de riqueza atual é inadmissível. (…) O Estado não pode deixar o povo na mão de um empresário, na mão do mercado, na mão de um banqueiro. O Estado deve assumir a responsabilidade de uma repartição da riqueza de uma forma mais equitativa. (…)”
“Somos hoje os piores do mundo em termos de distribuição de renda, mas é bom lembrar que o Brasil, em 2008, foi o único país na contramão da crise. A renda dos mais pobres subiu 15% acima daquela dos mais ricos. Enquanto o mundo desempregava 100 milhões de pessoas, nós criamos 20 milhões de empregos. O Brasil foi o único país em que a massa salarial cresceu. (…) Mesmo assim, eu tenho consciência de que poderia ter feito mais. Eu poderia ter acelerado. (…) Agora, você não consegue mais andar em São Paulo sem ver a quantidade de crianças esmolando pelas ruas e de adultos dormindo ao relento.”
O impeachment
“Eu acredito no impeachment. Acredito porque há situações que podem se transformar em crimes de responsabilidade. O que ele está fazendo com o coronavírus é um genocídio. É inimaginável que um presidente da República recebe da televisão para receitar remédios contra a postura da comunidade científica. (…) Ele não respeita quem quer que seja, e não é possível admitir que governe até o final do mandato. (…)”
“Mas eu não caio em desespero. Temos de cultivar a consciência de que a consolidação do processo democrático é difícil, o Brasil não está acostumado à democracia, vira e mexe, a cada 20 ou 30 anos sofre um golpe. Sempre que o golpe acontece, o povo entende que os militares são a solução. (…) Acho que o Congresso tem a chance de se respeitar e de ganhar o respeito da sociedade. Também acho que a Suprema Corte não deveria falar tanto de política, para se manifestar apenas nos autos do processo. (…)”
“No Brasil comete-se um erro, muitas vezes a gente politiza, a gente justicializa qualquer problema, e a Justiça também. Há uma inversão de valores. (…) Eu acho que dá para resolver o problema político sem confrontos. Com o impeachment, ou mesmo daqui a três anos, com a eleição direta, você resolve.”
Muito obrigado por ter chegado até aqui...
... Mas não se vá ainda. Ajude-nos a manter de pé o trabalho de CartaCapital.
O jornalismo vigia a fronteira entre a civilização e a barbárie. Fiscaliza o poder em todas as suas dimensões. Está a serviço da democracia e da diversidade de opinião, contra a escuridão do autoritarismo do pensamento único, da ignorância e da brutalidade. Há 25 anos CartaCapital exercita o espírito crítico, fiel à verdade factual, atenta ao compromisso de fiscalizar o poder onde quer que ele se manifeste.
Nunca antes o jornalismo se fez tão necessário e nunca dependeu tanto da contribuição de cada um dos leitores. Seja Sócio CartaCapital, assine, contribua com um veículo dedicado a produzir diariamente uma informação de qualidade, profunda e analítica. A democracia agradece.
ASSINE ou, se preferir, Apoie a Carta.
Carregando...