Como Covid-19 reduz oxigenação sem afetar respiração do infectado
De acordo com estudo realizado em mortos por coronavírus, doença ataca mais pelos vasos sanguíneos do pulmão, enquanto outras síndromes respiratórias danificam o tecido pulmonar em si
by Rafael GarciaEm um estudo que comparou cadáveres de sete vítimas da Covid-19 com sete vítimas da gripe H1N1, cientistas alemães viram extenso dano aos alvéolos pulmonares, mas com uma diferença: o novo coronavírus parece danificar o pulmão mais pelos vasos sanguíneos presentes no órgão do que pelas células pulmorares em si.
Descrita em um artigo dos pesquisadores na revista "New England Journal of Medicine", a descoberta pode ajudar a explicar um fenômeno que intriga médicos desde o início da doença: alguns pacientes de Covid-19 não têm sensação de asfixia, mesmo quando o nível de oxigenação do sangue está baixíssimo.
Como em alguns casos o dano pulmonar da Covid-19 começa pelos vasos capilares do órgão, isso explicaria por que a captação de oxigênio pode já estar baixa mesmo quando a mecânica respiratória das vítimas ainda está bem.
O trabalho, liderado por Danny Jonigk, da Escola Médica de Hannover, é mais um na lista de evidências de que o vírus tem ação no sistema vascular. Como no pulmão o patógeno acaba atacando a vítima por duas vias, ele é especialmente perigoso quando comparado a outros vírus causadores de síndrome respiratória aguda grave, sendo o H1N1 um deles.
No estudo, os alemães descrevem como o pulmão dos pacientes mortos pelo novo coronavírus tinham em média muito mais dano vascular do que os órgãos das vítimas de H1N1, que eram amostras da época da pandemia desta outra doença em 2009. E esse dano vascular ocorria paralelamente ao dano dos alvéolos, as microcavidades que captam oxigênio nas ramificações mais finas do pulmão.
"Os pacientes do grupo com Covid-19 tinham vascularização distorcida, com vasos capilares estruturalmente deformados", escreveram Jonigk e seus coautores. "Seus pulmões tinham trombose vascular disseminada com microangiopatia [danos nos vasos capilares] e obstrução de vasos capilares nos alvéolos", explicaram.
Segundo o pneumologista José Baddini Martinez, professor da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, o trabalho no "New England Journal" deve reforçar agora o argumento de médicos que defendem tratar um subgrupo dos pacientes de Covid-19 com anticoagulantes.
Apesar de o estudo alemão descrever um quadro assustador, porém, o médico brasileiro aponta algumas limitações da descoberta.
"Esse é um estudo de anatomia patológica, ou seja um estudo de autópsia, e os indivíduos que morreram estão entre os caso mais graves. O que eles encontraram ali não se aplica necessariamente às pessoas com condições leves de Covid-19, que são 80% dos casos conhecidos", diz Baddini.
Segundo o médico, é preciso ter cautela para considerar as implicações clínicas do trabalho.
"Não é por que foi visto isso em sete indivíduos em autópsia que a gente deve sair por aí administrando medicamentos anticoagulantes de maneira generalizada todo mundo que tenha Covid-19", alerta.
Ciência em evolução
Normalmente, estudos desse tipo que ganham espaço no "New England Journal", uma das revistas médicas mais disputadas do mundo, são mais robustos, envolvendo números maiores de indivíduos analisados. A publicação está abrindo exceções durante a pandemia de Covid-19, porém, para que descobertas em estágio mais precoce ganhem espaço.
A própria revista publicou desta vez, como editorial, um artigo explicando as limitações da descoberta.
Um estudo da própria USP, porém, articulado pelo patologista Paulo Saldiva, também observou danos vasculares nos cadáveres que foram analisados. Este trabalho não incluiu comparações com vítimas de outras doenças. E o consenso está se construindo, aos poucos, mundo afora.
"A descoberta de um novo processo patológico abre a possibilidade de desenvolvimento de novos tratamentos extremamente necessários e deve encorajar novas pesquisas", escrevem os médicos Lida Hariri e Corey Hardin, do Hospital Geral de Massachusetts, autores do editorial no "New England Journal of Medicine".