Falta de medicamentos de sedação preocupa profissionais de saúde na Bahia
Sedativos como o Rocurônio são necessários para intubação, procedimento comum para pacientes graves de covid-19
by Gabriel Amorim*"As pessoas ficaram muito preocupadas com respirador, achando que ia faltar respirador. Onde eu trabalho não falta respirador, mas estamos precisando dar um jeito pra conseguir sedativo. A preocupação hoje é mais o sedativo que o respirador”. A afirmação é de uma farmacêutica que trabalha diretamente com o manejo de medicamentos utilizados no processo de intubação - procedimento comum em pacientes graves de covid-19.
A profissional, que pediu para não ser identificada, trabalha em uma instituição privada de saúde da capital e relata que a falta das medicações começou a ficar preocupante há cerca de duas semanas. Segundo ela, a lista de medicamentos em falta já chega a mais de 20 substâncias, incluindo as drogas mais comumente utilizadas para a sedação, como é o caso do do Rocurônio, por exemplo.
“Estamos tendo que lançar mão de outras drogas, que não seriam a primeira escolha, não são usualmente utilizadas, por serem mais caras, feitas com substâncias diferentes, por uma série de motivos. Isso acaba cada vez mais agravando a situação porque a gente vai usando essas drogas para substituir o que está em falta e essa outra medicação vai entrando em falta também”, relata a funcionária.
A profissional explica, ainda, que as medicações afetadas são fundamentais ao processo de intubação. ‘O paciente que vai ser entubado precisa do relaxante neuromuscular para facilitar o processo e precisa ser mantido sedado enquanto estiver no respirador. Existem algumas drogas que são medicamentos de escolha para essa sedação e essas drogas já estão em falta“, detalha.
Uma enfermeira que trabalha no Hospital Espanhol, utilizado pelo estado no combate à covid-19, diz que o protocolo recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) prevê o bloqueador neuromuscular tanto na hora da intubação quanto para manter o paciente devidamente sedado. Ela confirma que o Rocurônio está escasso, mas não só ele. "Existem outros bloqueadores neuromusculares que podem substituir o Rocurônio. Mas estamos perto de chegar ao nível de escassez. Não só do Rocurônio e outros bloqueadores, mas de outros medicamentos, equipamentos de proteção e insumos em geral".
Oficio - O CORREIO teve acesso a um ofício datado de 14 de maio e assinado pelo secretário executivo do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) que informa a situação ao então ministro da saúde Nelson Teich. “Alguns medicamentos sedativos, adjuvantes na sedação e relaxantes musculares, que compõem a relação de fármacos do chamado kit intubação, são utilizados no âmbito hospitalar no manejo de pacientes portadores de COVID-19 com quadro crítico que necessitam de ventilação mecânica. Nesse contexto, recebemos nos últimos dias relatos de Secretarias Estaduais de Saúde (SES) informando que os estoques desses medicamentos nos hospitais de referência dos planos de contingência estaduais estão comprometidos em função da indisponibilidade de alguns dos produtos no mercado nacional”, diz o documento.
Ainda segundo o ofício, todos os estados brasileiros foram consultados sobre o assunto e 19 unidades da federação relataram a falta dos medicamentos. O documento lista 16 substâncias que estariam em falta no mercado. “Considerando que a falta desses medicamentos pode colocar em risco a vida de pacientes, especialmente os que estão em estado crítico, solicitamos especial atenção e apoio do Ministério da Saúde para garantir o abastecimento desses itens nos hospitais de referência que constam dos planos de contingência dos estados”, finaliza o texto,
Procurado para comentar o assunto, bem como para atestar a veracidade do ofício, o Conass informou que reconhece o documento. “Reconhecemos o ofício enviado, solicitando apoio do Ministério da Saúde na aquisição dos medicamentos citados uma vez que estes são de responsabilidade de aquisição direta pelos hospitais, estados e municípios, e há relatos dessas entidades sobre dificuldades de aquisição no mercado nacional podendo acarretar em desabastecimentos pontuais”, diz a nota enviada ao CORREIO. O Conass informou, ainda, não ter recebido qualquer resposta oficial do Ministério da Saúde “é sabido que o Ministério da Saúde está se mobilizando para apoiar os hospitais, estados e municípios”, completou.
A Secretaria da Saúde dos Estado da Bahia (Sesab) diz que diversos itens estão em nível crítico devido o atraso na entrega pelos fornecedores, sobretudo, pela indisponibilidade no estoque devido a falta de matéria-prima no Brasil. "Cabe ressaltar que não houve cancelamento de quaisquer procedimentos por ausência de medicamentos, pois há possibilidade de substituição de drogas. Alguns itens em falta nos distribuidores têm previsão de chegada no final de maio e outros para julho", diz a Sesab, em nota.
Já a pasta municipal diz que a capital tem os medicamentos em estoque mas reconhece a dificuldade de compra. “A Secretaria Municipal da Saúde esclarece que há um desabastecimento nacional de Succinilcolina e Rocurônio, medicamentos importantes para utilização nos respiradores em Unidades de Terapia Intensiva. Em Salvador, há o insumo ainda disponível em estoque, no entanto, a falta nacional pode refletir na rede municipal da capital baiana”, diz a nota enviada ao CORREIO pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS)
O coordenador de urgência do município de Salvador, Ivan Paiva, destaca que a situação mais preocupante, para o município, diz respeito aos medicamentos chamados de bloqueador neuromuscular. ‘Quando a gente vai fazer o processo de intubação existe a sedação, um medicamento analgesico, para que o procedimento não cause dor, e a gente usa esse medicamento para bloquear a parte neuromuscular do paciente, a gente paralisa os músculos para que o processo de intubação seja facilitado”, explica o médico.
O coordenador ainda aponta os riscos de se realizar uma intubação sem o bloqueador. “Quando eu não uso esse medicamento eu acabo gerando um processo de tosse. E esse paciente, ao tossir, ele joga todo um aerossol contaminado com uma carga de vírus no rosto de quem está intubando. Intubar sem isso é possível mas é um risco enorme para equipe de se contaminar”, detalha.
Estoque normal
Apesar das denúncias, na rede privada de saúde, a falta não é reconhecida. “As unidades privadas não tem nenhuma falta de medicação essencial para tratamento do paciente Covid ou não Covid”, informou a Associação de Hospitais e Serviços de Saúde do Estado da Bahia (Ahseb). Para quem trabalha no dia a dia do enfrentamento, no entanto, a situação preocupa. “Na instituição que eu trabalho a gente não teve ainda prejuízo aos pacientes porque temos lançado mão dessas outras drogas, mas a situação está difícil e estou com medo de chegar a hora de nem as outras alternativas a gente ter”, diz a farmacêutica.
“A falta dessas medicações acontece por um uso específico que não existia até então. Esse perfil de paciente sendo atendido agora com o coronavírus demanda um tipo de tratamento específico que aumenta muito a necessidade de sedativo e do bloqueador neuromuscular. O mercado realmente não estava preparado para isso, os hospitais tentam comprar mas não encontram, porque o fornecedor não consegue atender a demanda”, explica um intensivista que atua como coordenador de UTIs públicas e privadas da capital e preferiu não ser identificado.
“São medicações que no dia a dia de UTI a gente usava muito pouco, em casos muito específicos, mas que para essa patologia é necessário deixar o paciente realmente muito acomodado ao aparelho ventilador e precisa de um uso contínuo desse tipo de medicação. Os médicos estão precisando fazer escolhas, mudanças para outras medicações que não seriam de primeira linha”, diz o especialista.
O coordenador ainda esclarece que o pior momento não seria o de realização do procedimento de intubação em si, mas a necessidade de manutenção da ventilação e a forma como é necessário fazer especificamente para tratar o coronavírus. “Para o momento da intubação em si, existe uma infinidade de opções, mas para manter o paciente na ventilação mecânica é que as medicações são específicas e eram pouco utilizadas. A gente não usava de forma contínua, mas nessa patologia específica é preciso e isso fez o mercado entrar em colapso”, finaliza.
*Com orientação da subeditora Clarissa Pacheco