Eternos amantes

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Há muitos livros por ler, infinitos universos por desbravar, e é inútil imaginar que um dia daremos a tarefa por encerrada. Mesmo que nunca mais acrescentasse novos volumes à minha biblioteca, dificilmente daria conta de todos os livros ainda não lidos que repousam nas prateleiras. Até porque, como disse certa vez João Pereira Coutinho em artigo na Folha, “as bibliotecas são feitas de livros que lemos no passado, que consultamos no presente e que um dia, talvez, leremos no futuro. Ou que alguém lerá por nós”. Não temos, portanto, que carregar o fardo de ler todos eles a qualquer custo.

Mas, mesmo com tantas páginas virgens ainda por explorar, por que será que sentimos, de tempos em tempos, uma arrebatadora necessidade de regressar a páginas nas quais nos embrenhamos um dia? Talvez porque elas sejam feitas da mesma natureza dos amores eternos. Como as paixões de outros tempos que deitaram raízes em nossa memória, estamos imutavelmente presos às obras que nos fizeram muito felizes. Releio livros que adoro ao menos uma vez por ano. E, invariavelmente, sou tomado por uma sensação de aconchego ao ter nas mãos um objeto que permanece íntegro, belo e poderoso, apesar das manchas senis no papel.

É o caso, agora, de A Idade da Razão, meu livro preferido de Sartre. Retorno vinte anos depois ao mundo de Mathieu, Marcelle, Boris, Ivich e Daniel, que me inspiraram a escrever um romance com personagens de mesmo nome. Apesar do tempo transcorrido, reconheço cada palmo do terreno: os diálogos soam familiares, a narrativa provoca uma satisfação mais sensorial do que intelectual. É como se estivesse ali, ao lado dos personagens, acompanhando seus conflitos silenciosos, seus ditos por não ditos, seus imensos icebergs submersos. A Idade da Razão me marcou muito e me fez enveredar por outras obras do autor – A Náusea, As Palavras, a peça Entre Quatro Paredes – sem jamais sentir o mesmo ardor.

Cultivo o hábito da releitura desde a juventude, quando li duas ou mais vezes obras como Cem Anos de Solidão (Gabriel García Márquez), On The Road (Jack Kerouac) e A Leste do Éden (John Steinbeck). O Sol Também se Levanta e O Velho e o Mar, ambos de Hemingway, eu li três vezes em diferentes épocas da vida. A cada leitura, novos significados foram adicionados, como uma receita que fica melhor à medida que nos aperfeiçoamos na cozinha. Há outros na estante esperando a visita do velho amante: O Fio da Navalha (Somerset Maugham), O Chalé da Memória (Tony Judt), Pastoral Americana (Philip Roth).

Trata-se de um prazer epicurista. Voltar a um livro que amamos é como atracar num cais seguro, tão familiar que identificamos exatamente onde ficam as pedras e armadilhas do caminho. É retornar a uma cidade que conhecemos bem: sabemos onde se escondem os restaurantes de boa comida e bons vinhos, os monumentos que nos emocionam, as vielas por onde ninguém passa e que guardam uma velha árvore ou uma casinha que adoramos. Creio que devemos nos conceder esse tipo de prazer de vez em quando: voltar a certos livros como se volta a certas cidades