STF resiste a pressões para soltar presos durante pandemia
Ministros concederam só 6% dos habeas corpus que chegaram à corte e barram ações coletivas
Ministros do Supremo Tribunal Federal negaram quase todos os pedidos de presos que recorreram à corte para sair da cadeia durante a pandemia do coronavírus, tratando com rigor até casos em que foram apresentados atestados médicos para comprovar riscos à saúde dos detentos.
Análise feita pela Folha em 1.386 habeas corpus examinados pelo STF de março até o último dia 15 mostra que o tribunal só determinou a soltura de presos ou sua transferência para prisão domiciliar em 87 casos, ou 6% do total.
O levantamento mostra que os integrantes do Supremo têm preferido deixar a análise dos pedidos com juízes e tribunais de instâncias inferiores, em vez de impor o cumprimento das medidas sugeridas pelo Conselho Nacional de Justiça para conter a transmissão da doença nos presídios.
Em 17 de março, o CNJ publicou uma recomendação para que os juízes tomassem medidas de caráter preventivo, libertando ou transferindo para regime domiciliar pessoas acusadas de crimes não violentos e pertencentes a grupos vulneráveis diante da Covid-19, como idosos, mulheres grávidas e lactantes.
Os magistrados não são obrigados a seguir a recomendação do CNJ. O órgão definiu parâmetros para que eles reavaliem os processos sob sua jurisdição, mas deixou a critério de cada um a decisão. Em todos os casos, os advogados dos presos podem recorrer a instâncias superiores, inclusive ao Supremo.
A maioria dos pedidos que chegaram ao STF esbarrou numa súmula do tribunal que restringe a análise de decisões individuais das instâncias inferiores pelos ministros da corte se elas não tiverem sido examinadas anteriormente por um colegiado, nos tribunais estaduais ou no Superior Tribunal de Justiça.
A súmula permite que os ministros reconsiderem esses casos se encontrarem ilegalidades evidentes nas decisões das instâncias inferiores, mas isso tem sido bastante raro. Ao analisar os textos de 796 decisões disponíveis no site do STF, a Folha só encontrou 20 habeas corpus concedidos por esse motivo desde o início da pandemia.
Advogados, defensores públicos e grupos de defesa de direitos humanos têm pressionado o Supremo a fazer a recomendação do CNJ ser cumprida, mas até ministros que têm concedido habeas corpus nos casos que consideram excepcionais se mostraram resistentes a essas pressões nas últimas semanas.
Em março, quando o ministro Marco Aurélio Mello sugeriu num despacho que medidas como as recomendadas pelo CNJ fossem implementadas em todo o país, o plenário do Supremo derrubou sua decisão por 7 votos a 2. O ministro Gilmar Mendes foi o único a acompanhar Marco Aurélio no julgamento.
Pouco depois, o ministro Ricardo Lewandowski recusou pedido para que todas as mães e gestantes presas em caráter provisório ou com condenação definitiva fossem transferidas para o regime domiciliar, negando-se a estender os benefícios de um habeas corpus coletivo que ele concedeu em 2018.
Ao negar o novo pedido, que foi apresentado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o ministro argumentou que a recomendação do CNJ já definia critérios para o exame desses casos pelos magistrados de instâncias inferiores, e que seria melhor analisar cada caso individualmente.
Segundo o levantamento da Folha, Marco Aurélio soltou 29 presos desde o início da pandemia, o equivalente a 29% dos casos que examinou. Gilmar Mendes concedeu 18 habeas corpus, 15% dos pedidos que analisou. Lewandowski fez o mesmo em apenas 10 casos, 8% dos processos que recebeu.
Em março, Gilmar Mendes transferiu para prisão domiciliar um ex-vereador condenado por corrupção, argumentando que fazia parte do grupo de risco. Em abril, ele negou a extensão do benefício a outros acusados no mesmo caso por razões processuais, apesar dos atestados médicos que apresentaram.
Em alguns processos analisados pela Folha, os ministros soltaram pessoas que estavam presas em caráter preventivo por tempo excessivo, embora não fizessem parte de grupos de risco. Condenados a regimes prisionais mais brandos que ainda assim continuavam atrás das grades também foram soltos pelo STF.
Há duas semanas, o PSOL protocolou no Supremo uma nova ação para pedir que a corte determine providências às autoridades responsáveis pelo sistema penitenciário e imponha aos juízes da primeira instância o cumprimento da recomendação do CNJ. O ministro Celso de Mello é o relator da ação.
"Os juízes têm sido em geral muito reticentes no cumprimento da recomendação", afirma a advogada Maíra Fernandes, uma das autoras da ação do PSOL. "A doença está se alastrando rapidamente nos presídios, criando riscos não só para os presos, mas para os agentes penitenciários e suas famílias."
De acordo com estatísticas compiladas pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que incluem informações dos governos estaduais, foram confirmados até agora 1.079 casos de infecção pelo novo coronavírus no sistema penitenciário e 34 mortes.
Ninguém sabe ao certo quantos presos foram soltos por causa da pandemia. Em abril, o Depen estimou em 30 mil o número de beneficiados pela recomendação do CNJ, mas especialistas acreditam que houve um exagero, com a inclusão de ordens de soltura sem relação com os critérios estabelecidos pelo CNJ.
"O STF tem sido cauteloso na análise dos processos, resistindo especialmente a pedidos coletivos, como o das mulheres", diz o defensor público Glauco Mazetto Tavani Moreira. "Além das razões processuais, os ministros parecem temer a repercussão política que decisões mais abrangentes poderiam ter."
Em março, a ideia de que a Justiça soltou milhares de presos por causa da pandemia, incluindo até criminosos violentos que não se enquadrariam nos parâmetros da recomendação do CNJ, levou o presidente Jair Bolsonaro e seu então ministro da Justiça, Sergio Moro, a fazer críticas públicas ao Poder Judiciário.
O próprio Bolsonaro tocou no assunto durante a reunião ministerial de 22 de abril, conforme o vídeo divulgado pelo Supremo na sexta-feira (22), no âmbito do inquérito aberto pelo ministro Celso de Mello para investigar acusações de Moro sobre tentativas de interferência do presidente na Polícia Federal.
"O Moro ficou revoltado com a... com a liberdade desse pessoal", disse o presidente durante a reunião. "Por causa de... de... de... de vírus, botou os estuprador pra fora." Moro, que rompeu com o governo dois dias depois, não fez nenhum comentário sobre o assunto durante a reunião ministerial.
Os poucos presos que conseguiram habeas corpus no STF para sair da cadeia na pandemia são acusados em sua maioria de crimes cometidos sem violência, como furto, corrupção e tráfico de drogas, envolvendo pequenas quantidades. Há apenas duas exceções entre as decisões verificadas pela Folha.
Marco Aurélio soltou um guarda municipal acusado de espancar um adolescente até a morte no interior de Pernambuco. Ele está preso em caráter preventivo, sem condenação judicial definitiva. Ao examinar o caso, o ministro concluiu que não havia razão para a prisão e determinou a soltura.
Gilmar Mendes soltou um homem de 79 anos condenado por estupro de menor, argumentando que sua saúde é muito frágil. O ministro determinou que ele fique preso em regime domiciliar e proibiu que tenha contato com menores de 18 anos e acesso a celular ou computador conectado à internet.