Arquivar a histeria

by

O súbito imperativo ético de salvar o arquivo do Diário de Notícias - aliás, do Global Media Group (GMG) - dos seus proprietários, é uma narrativa que roça a patetice, com tiques ideológicos caricatos e um profundo desrespeito por uma empresa que há décadas investe no tratamento e preservação de um espólio que, de facto, é património nacional, venha ele a ser classificado - ou não.

A inaudita histeria, caída de um bloco aos trambolhões, envolve uma mão cheia de veneráveis - outros, candidatos a tal - que pedem ao Estado a classificação do arquivo, alegando estar este em perigo. Uns, quiçá, bem intencionados; todos mal informados por quem os expõe a uma notória falta de senso. A verdade dos factos, a qualidade da informação, a liberdade de expressão, o direito de resposta, da ética do negócio... património tão ou mais importante que o do arquivo, atira-se às urtigas, com uma leveza, essa sim, constrangedora.

Cabe-me agradecer ao presidente da Câmara de Gaia, Eduardo Vítor Rodrigues, que em conversa comigo - à época, administrador executivo do GMG - disponibilizou o Arquivo Sophia de Mello Breyner para guardar mais de 150 anos de História da imprensa portuguesa. Pois é... Aos agentes da campanha, que a tratam de forma inquinada, sabendo que o espólio estará seguro, em local climatizado, e certificado, pergunto onde está a origem - e o verdadeiro objetivo - do melodrama. Estivesse o arquivo a submergir às cheias do Douro, a arder numa qualquer fogueira de vaidades, corroído em desgraça... eu próprio alertaria o Estado. Talvez até me aliasse aos peticionários; ou melhor, a um crowdfunding...

Durmam em paz os arautos da desgraça. Não há drama algum com o arquivo. Percebam, a propósito, que o GMG já provou estar disponível para partilhar esse valor, que é seu, mas que o país merece; está mais que interessado em digitalizá-lo, para consulta fácil e eficaz; quer oferecer gratuitamente o acesso a quem precisa - investigadores e estudantes - e, até, rentabilizá-lo, junto de quem pode, para investir na valorização dos documentos. De resto, há instituições interessadas nisso; tratando o tema com recato, e sem agendas que não lhes pertencem. Vejo isso, de forma lata, como parte da independência dos Média, da responsabilidade social, da liberdade empresarial... diria mesmo, simplificando, do bom senso.

Escrevo a título meramente pessoal; naturalmente, com a consciência de quem representa um acionista de referência. Esclareço: não tenho nada contra a preocupação com o arquivo, aplaudo o reconhecimento do seu valor; e nunca me oponho a debate público algum. Julgo, até, ser merecida a classificação patrimonial, desde que não ponham em causa os legítimos interesses do proprietário, nem o empurrem para agendas fora de tempo, desfocadas e desvirtuadas. O primeiro compromisso de todos e cada um dos grupos Média, nesta altura, é com a valorização das suas marcas, a defesa do jornalismo e do seu papel insubstituível, num contexto muito difícil para a indústria, o país, e o mundo em geral. Esse é o património que me foca dia e noite.

Acho, no mínimo, caricato - e esclarecedor - que se acene o fantasma da falência, erguendo a salvação do arquivo como farol da salvação civilizacional. Não se preocupem. Há quem esteja empenhado em tudo o que verdadeiramente importa, antes daquilo que nunca esteve, nem está, em perigo. O arquivo está guardado; bem tratado - e tem dono. Outros, como o arquivo fotográfico do Comércio do Porto, estão em Vigo ao deus dará. Mas como já nada aí se joga, já ninguém se lembra de jogar ao património...

Deixo uma nota à direção do jornal Público, que respeito, profissional e pessoalmente. Primeiro, não publicam esclarecimentos enviados pelo Pedro Tadeu, diretor do arquivo em causa, contrapondo a visão desinformada da redação - e suas fontes; a seguir, negam publicar o direito de resposta, a pretexto do tamanho previsto na lei e outros argumentos ainda menos compreensíveis. Sempre em frente, até ao abismo, ainda exigem a indignação como único lugar da expressão... É um péssimo serviço a todos nós. Mas, em primeira mão, aos vossos leitores, que merecem pensar por si próprios, com acesso a todos os dados e fontes informadas. O jornalismo, de facto, é uma atitude. Não é um formalismo, nem uma narrativa... muito menos um referendo corporativo.

Não tenho responsabilidades editoriais no GMG. Tenho-as no Plataforma, que está a relançar-se, com novo site, nova direção e novos modelos. Cometeremos erros, tentaremos corrigi-los; ouviremos sempre toda a gente; por maioria de razão, profissionais com o mesmo calibre. A concorrência, legítima e saudável, não pode excluir o sentido de urgência, que nos é comum, na defesa difícil e complexa da afirmação do jornalismo. Se falhamos na nossa essência, os leitores não precisam de nós; bem podem "papar" petições nas redes sociais.

O arquivo GMG está bem - e recomenda-se. Muita coisa tem de mudar nos Média. Faço parte de uma geração que tem de se reinventar; não estou isento de erros nem rejeito responsabilidades. Veremos quem cá fica a defender o jornalismo. Os outros andam aí... mas o interesse é outro.