Relatório da criminalidade de 2019 derrapa prazo e fica secreto até 30 de junho
by Valentina MarcelinoO Relatório Anual de Segurança Interna de 2019 só vai ser divulgado no final de junho. O presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais manifesta a sua "perplexidade" e o Observatório de Segurança Interna diz que as "estratégias operacionais" das polícias ficam comprometidas
"Foi com perplexidade que soubemos que o governo tinha pedido para prorrogar para 30 de junho o prazo para envio à Assembleia da República do Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) de 2019. É incompreensível esta enorme dilação temporal e grande a nossa preocupação com a dificuldade que isto coloca à atempada apreciação e eventual tomada de iniciativas políticas", assinalou ao DN Luís Marques Guedes, presidente da Comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
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A Lei de Segurança Interna obriga que o RASI seja enviado ao parlamento até 31 de março. A declaração do estado de emergência no dia 18 desse mês levou, nessa altura, a que o gabinete do primeiro-ministro pedisse a suspensão desse prazo.
No entanto, com o fim desse período de exceção no passado dia três, a derrapagem para final de junho não está a ser compreendida. "Não se trata de estar a esconder ou não esconder, mas de uma questão de respeito pela lei, que está a ser ignorada", sublinha ainda aquele responsável, que é deputado do PSD, quando indagado sobre se haveria alguma intenção de ocultar estes dados.
O RASI é um documento orientador para as políticas de segurança interna, no qual são publicadas as estatísticas da criminalidade e os resultados operacionais das polícias - neste caso relativo a 2019. É feita uma análise e avaliação pelo Conselho Superior de Segurança Interna (CSSI) - que integra, entre outros, todas as forças e serviços de segurança, secretas, Forças Armadas e respetivos ministros de tutela - e preparadas as prioridades estratégicas para o ano seguinte.
Sendo o RASI apenas divulgado a 30 de junho, já a meio do ano, no final da atividade parlamentar, derrapando ainda mais a sua discussão para depois do verão, pouco sobra para definir a tempo de 2020.
Os "considerandos" da derrapagem
O DN questionou o gabinete da secretária-geral do Sistema de Segurança Interna (SSI) - organismo que coordena o RASI - sobre os motivos deste prolongado adiamento, mas não obteve resposta. No ofício que chegou ao presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, o gabinete de António Costa subscreve a proposta da secretária-geral do SSI, Helena Fazenda, que elenca vários "considerando" para justificar o pedido.
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Ferro Rodrigues submeteu a carta à conferência de líderes e a data de entrega foi fixada pela A.R. para 30 de junho. "Considerando o levantamento gradual das medidas de caráter excecional a que Portugal esteve sujeito nestes últimos meses; considerando que as circunstâncias que ditaram o pedido de suspensão do prazo de entrega do RASI na A.R. estão a ser ultrapassadas; considerando que apesar de estarem reunidas as condições mínimas, ainda é necessário analisar, discutir e validar o RASI em sede do Gabinete Coordenador de Segurança e, posteriormente, em Conselho Superior de Segurança Interna", é proposta a fixação do prazo para 30 de junho.
André Coelho de Lima, colega de Marques Guedes na bancada do PSD é um dos deputados designados pela Assembleia da República no CSSI e também vê com apreensão esta demora. "O RASI faz as projeções das políticas de segurança interna e é uma das bases para a definição das prioridades de política criminal para o ano seguinte. Discutir estes dados em junho, que não será, ou outubro, não faz sentido", afirma.
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O também vice-presidente da Assembleia Parlamentar da Organização de Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), lembra que "o estado de emergência só começou no final do primeiro trimestre" e que nessa altura "as forças e serviços de segurança já tinham os seus relatórios concluídos e não percebem porque não foi feita a reflexão prevista".
Coelho de Lima considera que o impacto será evidente: "fica 2020 como um ano sem projeções de política de segurança interna e criminal e não se sabe quais eram os objetivos do governo". O deputado sublinha que "quando o estado de emergência terminou, o RASI já devia estar concluído há muito tempo".
Transparência em causa
Este ano, o CSSI nunca se reuniu. Uma reunião agendada para 20 de janeiro "foi cancelada à última da hora", afiança André Coelho de Lima. A ordem de trabalhos nessa reunião incluía dois pontos: a apreciação do projeto de proposta de lei de política criminal e a cooperação policial europeia - desafios futuros.
Na altura não havia ainda dados do RASI. A apresentação do RASI chegou a estar agendada no CSSI para 20 de março, mas a declaração do estado de emergência a 18, obrigou a cancelá-la - embora nessa altura a dados do relatório já estivessem confirmados. De qualquer forma, salienta o deputado, "até à declaração do estado de emergência passaram quase dois meses e tinha havido ainda muito tempo para reunir e tomar decisões".
O presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT) também olha com incompreensão para esta derrapagem. "Está em causa um princípio de transparência na apresentação de contas numa área de grande sensibilidade para todos os portugueses", assevera António Nunes.
Admite que "tendo em conta a situação do país, devido à pandemia, a discussão política até pudesse ser adiada, mas não a discussão técnica e operacional dos resultados". Este especialista em segurança e terrorismo não entende "porque o relatório não foi enviado na data prevista, 31 de março à A.R., pois não há razão para não estar concluído nessa altura, ser entregue no parlamento e mantido selado e guardado até haver condições para o discutir. Assim a lei seria respeitada e do ponto de vista técnico podia ser feito".
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O presidente do OSCOT recorda que o RASI "também é um documento de tendências e permite aos vários atores da Segurança Interna ajustar os seus programas, neste caso para 2020 e 2021. É, por isso, um documento prospetivo, com base no qual o SSI pode ajustar as suas estratégias operacionais, desde o combate à criminalidade, à prevenção da sinistralidade rodoviária".
SSI "figura ausente"
Com o RASI ainda em segredo até junho, António Nunes receia que "este ano as lideranças policiais não tenham a tempo todos os elementos para as indicações estratégicas dos seus programas".
Na mesma linha crítica está o general Agostinho Costa, ex-número dois da GNR e um dos analistas do Grupo de Reflexão Estratégica sobre Segurança (GRES): "Não se compreende que o RASI não tenha sido difundido no prazo normal, até porque quem o coordena (a secretária-geral do SSI) tem sido uma figura ausente durante a crise pandémica em curso", afirma.
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Por outro lado, adianta ainda, "o confinamento não implicou uma excessiva intervenção das polícias. Muito antes pelo contrário. O tempo para planear e efetuar estudos e relatórios não foi, de modo nenhum, escasso, a meu ver". Além disso, "o RASI é um documento importante para aferir as orientações estratégicas de curto prazo da ação das polícias."
Previsões ainda não confirmadas
No início do ano o ministro da Administração Interna adiantou que os dados preliminares do RASI apontavam para uma nova descida da criminalidade violenta em 2019.
Numa longa intervenção perante militantes socialistas, Eduardo Cabrita citou indicadores internacionais que apontam Portugal como o terceiro país mais seguro, quando em 2014 ocupava a 18º posição.
"Os dados preliminares do RASI de 2019 apontam que Portugal continuou no ano passado o caminho de redução da criminalidade grave e violenta. Temos registado um caminho sustentado de significativa redução da criminalidade geral e da criminalidade grave e violenta", declarou.
Neste ponto, o ministro da Administração Interna atribuiu os resultados à existência de uma "estratégia de presença e de proximidade das forças de segurança" e, por outro lado, "a uma relação de confiança" entre a população em geral e as forças de segurança.
Artigo atualizado às 10h50 com as declarações do general Agostinho Costa