O fim da democracia?

Por que razão países como a Tailândia, o Bangladesh, a Turquia, ou a Ucrânia devem adotar orientações democráticas quando os exemplos vindos dos EUA e da Europa são fracamente maus?

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No Verão de 1989, Francis Fukuyama publicou, no The National Interest, um artigo intitulado O Fim da História?, no qual argumentava que se estava a assistir não somente ao fim da Guerra-fria, mas ao «fim da História». Ou seja, ao culminar «da evolução ideológica da humanidade» através da «universalização da democracia liberal como a forma final de governo humano». 

Alguns anos mais tarde, em O Fim da História e o Último Homem, Fukuyama veio esclarecer o significado do seu raciocínio. O que era sugerido diferia substancialmente da maior parte das interpretações feitas na altura, sobretudo num ponto: o significado da «História». 

Para o autor, a História como um conjunto agregado de acontecimentos não chegaria ao fim, mas antes a História entendida como um «processo evolucionário, coerente» e «único». A intenção não era alegar que existiriam mudanças dramáticas na sociedade implicando, por conseguinte, o fim de tudo o que nos rodeia mas, sim, a defesa da ideia de que não existiria mais progresso nos princípios orientadores e nas instituições a ela associados.

Não obstante, o argumento central da sua Tese mantinha-se. No fim do século XX, o mais provável seria que a humanidade fosse dominada pelos princípios da democracia liberal. 

O otimismo de Fukuyama seria reforçado, pouco tempo depois, com um argumento que diz muito aos portugueses. Trata-se da 3ª Vaga de Samuel Huntington que versa sobre as vagas e as contra-vagas de democratização iniciadas no século XIX, mas, sobretudo, sobre a importância da 3ª vaga de democratização aberta precisamente em Portugal, com a revolução do 25 de Abril. 

Naturalmente que o título deste artigo é provocatório. A democracia não chegará ao fim. Da mesma maneira que a «História» não havia chegado ao fim com o argumento de Fukuyama. 

Mas, a tal «universalização» democrática, que o autor preconizava no final do conflito bipolar, está em crise ou mesmo em declínio. Em suma, poderemos estar a chegar a um ponto de ebulição para uma contra-vaga que colocará fim à vaga de democratização, iniciada em 1974. 

Quais as razões? 

Para os críticos a resposta é sempre a mesma: a questão reside para além das nossas fronteiras. Ou seja, os "inimigos democráticos" são os verdadeiros culpados. Essas criaturas mitológicas que vivem num horizonte longínquo, como a China ou a Rússia, são a fonte de todos os problemas em redor das democracias.  

Com efeito, erradamente sublinhe-se, quando os termos "democracia" e "inimigo" são utilizados na mesma frase existe uma tendência natural, por parte daqueles que vivem nas sociedades democráticas do Ocidente, em procurar todas as justificações fora desta "bolha democrática".

Esta asserção não é inédita, nem recente. Durante o período da Guerra-Fria fomentou-se a ideia de que a democracia estava em "guerra" com o comunismo e, antes disso, com o nacional-socialismo e com o fascismo. Recentemente, estes "inimigos externos" ganharam uma nova dimensão com a ascensão do autoritarismo mundial, do terrorismo internacional, do extremismo religioso e do fundamentalismo islâmico. 

Vamos ser muito claros: esta forma de encarar o que está a suceder é errada. Ou, pelo menos, não é única razão pela qual este debate está em cima da mesa. 

O problema não está unicamente nos inimigos externos. Reside, isso sim, nos Estados "democráticos" que diariamente instigam um conjunto de pressupostos contrários à verdadeira essência da democracia.

Os resultados são mais do que evidentes. 

Primeiro, tem existido nos últimos anos uma detioração da qualidade da democracia a nível estatal, principalmente com o crescimento da extrema-direita: em França (Marine le Pen e a Frente Nacional); na Holanda (Geert Wilders e o Partido pela Liberdade); na Áustria (Jörg Haider, Norbert Hofer e o FPÖ); no Reino Unido ( Nigel Farage e o UKIP); na Bélgica (Vlaams Belang) e na Alemanha onde a AfD tem hoje mais força. Itália transformou-se numa incubadora da extrema-direita, com a Liga de Matteo Salvini e com a ascensão dos Irmãos de Itália. Em Espanha, o Vox ganha lastro. A projeção do Partido Popular Dinamarquês, do Partido Popular Suíço, do húngaro Jobbik, dos democratas Suecos e dos "Verdadeiros Finlandeses", são apenas mais alguns exemplos desta erosão. 

Na União Europeia (UE), a "democracia" ainda é um conceito vago onde os processos de decisão são de cima para baixo (top-down) , dominados por uma estrita elite política. 

Em segundo lugar, como consequência deste pano de fundo, cresceu um conceito em torno da falta de legitimidade do "bloco democrático". Por que razão países como a Tailândia, o Bangladesh, a Turquia, ou a Ucrânia (todos com retrocessos democráticos) devem adotar orientações democráticas quando os exemplos vindos dos EUA e da Europa são fracamente maus? Provavelmente, a resposta será negativa. O resultado traduziu-se também no aumento de casos paradoxais, como o da Hungria no seio da UE.

Toda esta conjuntura negativa permitiu o ressurgimento dos regimes autoritários (Rússia; China; Venezuela; Arábia Saudita; Irão) e são, de certa maneira, o resultado da ineficiência das democracias ocidentais/liberais em criar novas dinâmicas que impulsionem positivamente uma nova ordem mundial democrática.

Por exemplo, no sistema eleitoral norte-americano o first-past-the post praticamente impede o acesso a outros partidos políticos. A arena é disputada entre Republicanos e Democratas. Ponto final. Este método é positivo?

Igualmente, será que a falta de legitimidade democrática que se instalou no seio da UE corresponde à visão de Robert Schuman e de Konrad Adenauer? Que relação tem com o crescimento da extrema-direita?

Apesar do reforço do poder do Parlamento Europeu, o processo de integração europeu continua a assumir a sua forma top-down . A high politics não tem controlo democrático e a elaboração de determinadas políticas por parte de algumas elites reside no inadequado consentimento tácito popular. Qual o resultado? A participação nas eleições europeias passou a ser uma nota de rodapé. Os eleitores estão desiludidos com o processo político, em particular, e com os políticos, em geral. 

Em Portugal, regozija-se quando se ultrapassa a fasquia dos 50% nas legislativas. Nas europeias um bom resultado é chegar aos 30% de participação. Para os menos atentos, a UE só interessa aos países do norte europeu. 

Se se parar para pensar, quem decide a vida política de todos nós é esta faixa média entre os 30% e os 50%. É óbvio que estas pessoas não representam as convicções e os valores de toda a população. Quem é que genuinamente conhece, ou reconhece, os deputados que ajudou a eleger? Talvez alguns saibam quem é o cabeça de lista, mas pouco mais. Quem é o português que não se confunde quando o Partido mais votado já não forma Governo? Quem é que não repudia as tentativas de sucessivos Governos em controlar a comunicação social? Quando o princípio da separação e interdependência de poderes é uma farsa e quando os Tancos banalizam-se, o descrédito é total. Este enfraquecimento sucessivo das fundações democráticas é francamente mau. 

No geral, alimentou-se a ideia de que a participação democrática é irrelevante. Pode-se discutir Hong Kong, a China ou as ameaças de outros fenómenos autoritários – e isso é tudo parcialmente verdade –, mas, não podemos deixar de efetuar uma introspeção crítica sobre o que se está a passar à nossa volta. 

É indispensável inverter este momento. Como é que se resolve?

Implementando níveis de desenvolvimento económico-social que tragam a confiança de volta. Significa encontrar formas adequadas de decisão que possam potenciar a descentralização, a inclusão, a tolerância, a diversidade e a abertura da sociedade participativa, onde os cidadãos possam exprimir as suas posições. Fundamentalmente com o reforço das instituições democráticas, através do combate à má governação e à corrupção, garantindo, durante este procedimento, o fortalecimento do papel do Estado de Direito. 

Certo dia Sir Winston Churchill afirmou: «quando não existe nenhum inimigo interno, os inimigos externos não nos podem ferir». E aqui é que está o verdadeiro problema pois a democracia é, em certa medida, a sua pior inimiga. Porquê? Porque a maioria das questões que estão hoje em dia a ser debatidas resultam de um elevado grau de inépcia, apatia, alheamento e desinteresse por parte das democracias liberais. No limite, ou se muda a maneira como a democracia é percecionada e voltámos a injetar certeza no processo ou, então, teremos um grave problema entre mãos. A solução – para que não se valide definitivamente o "fim da democracia" – encontrar-se-á sempre na vontade das democracias liberais do ocidente.