Crescer

"Bem mandado, raramente apanhava castigos, tal como o chinelo flácido, que fazia mais barulho do que outra coisa, pouco lhe chegou. Mas, quando ela o enviava para aquela sala, onde só havia molas da roupa, esquecia-se de que o silêncio dele se construía à custa desse mundo onde se entregava voluntariamente."

by

Bem mandado, raramente apanhava castigos, tal como o chinelo flácido, que fazia mais barulho do que outra coisa, pouco lhe chegou. Mas, quando ela o enviava para aquela sala, onde só havia molas da roupa, esquecia-se de que o silêncio dele se construía à custa desse mundo onde se entregava voluntariamente.

A mola azul ou vermelha era o próprio e a amarela, invariavelmente, era a donzela em perigo, qual estrela dos filmes que a RTP lhe trazia nos anos 80. Os homens preferiam as loiras e ele não era exceção. As molas perfilavam-se como soldados e a amarela estava cativa de outra figura masculina de mau caráter com o seu exército invencível. Com ou sem aliados, o dono da história resgatava sempre essa princesa de imaginário ouro. E assim se passava o tempo num mundo que, quando muito, o faria ansiar por novo "castigo" naquele acampamento de soldados de plástico e metal enrolado.

Depois, veio a Bela Adormecida, a Branca de Neve e, mais tarde, Helena de Troia.

Seguiu-se o óbvio Romeu e Julieta, que, verdadeiramente, só interiorizou numa adaptação para cinema. Ou o inevitável drama nacional de Pedro e Inês. Mas não esquece a tarde de adolescente, ouvindo um pequeno rádio, enquanto um locutor introduzia a história de Tristão e Isolda, preparando o caminho para Wagner o conduzir pela tragédia. Aqueles enganos da má fortuna deixaram-no ao mesmo tempo triste e ansioso por aquilo a que mais tarde alguém lhe trouxe num filme sob a expressão "um amor irreversível".

Mas o ponto de viragem foi "Alias", uma série da primeira década deste século, protagonizada por Jennifer Garner. Perdia-se na admiração dela e não de si próprio. Via-se ao lado e não a resgatá-la. Passou a precisar de admirar tanto como de ser admirado. A determinação de Sidney Bristow tocou-o mais do que os heróis românticos do mundo clássico e culto de outrora. E atrás dela vieram outras, como "Salt", com Angelina Jolie. É claro que estamos a falar do mesmo rapaz que perdeu mais tempo a pensar no "Homem Bicentenário" ou nos volumes de a "Fundação" de Isaac Asimov (tanto haveria a dizer sobre a pisco-história…) do que em "Fausto" de Goethe.

Hoje, a sua referência cresce e obriga-nos a crescer com ela, pega no seu sabre de luz, com medo mas esperança, hesitação mas determinação, admirando e deixando admirar, pelo que até dá nome à viatura que o leva ao fim do mundo: a morena Rey de "A Guerra das Estrelas".

Talvez o dia da criança seja sempre o seu dia: nunca estará crescido.