Antecipar a morte em Portugal
by Miguel RicouIdentificar pessoas que podem mudar de ideias, definir um período de espera diferenciado para doenças terminais e não terminais e perceber que condições pessoais podem potenciar o desejo de antecipar a morte são algumas das questões que devem ser acauteladas no âmbito da legislação sobre a morte antecipada.
Está em curso o processo de legalização da morte antecipada em Portugal, termo que considero bem mais rigoroso do que morte assistida para fazer referência à eutanásia e ao suicídio assistido.
Tenho, no âmbito do meu trabalho na Faculdade de Medicina do Porto e da coordenação da “Plataforma Europeia Wish to Die”, publicado em co-autoria um conjunto de artigos sobre o tema. O objetivo é trazer a ciência médica e psicológica para o debate. Sempre mantive a expetativa que o nosso papel, como representantes da ciência, seria o de contribuir para as escolhas que fazemos enquanto sociedade. Contudo, neste tema da morte antecipada, tais contributos nem sempre são bem recebidos. Na verdade, fica a sensação que as pessoas esperam um “sou a favor” ou “sou contra”, quando nada, ou muito pouco, na vida dos adultos pode assumir tal dicotomia. Poder-se-á argumentar que é necessário tomar uma decisão, que a lei terá que permitir ou não permitir que alguém possa ser ajudado a morrer a seu pedido. Sendo verdadeiro o argumento, não pode ser escamoteado que a resposta ao mesmo será sempre pouco fiável se não forem compreendidas as implicações que as opções encerram. E é aqui que entra a ciência, muito mais do que as crenças e as ideologias.
Limitar a discussão a dois argumentos é seguramente redutor e, mais do que isso, polariza a discussão dificultando soluções mais equilibradas. Dizem-nos que o que está em causa é a pessoa poder decidir sobre a sua própria vida, por um lado, e a inviolabilidade da vida pelo outro. Tais afirmações serão justificáveis a partir de crenças, mas nunca a partir de uma perspetiva que se foque no melhor interesse das pessoas.
Começando pelo último argumento, fica claro que a vida é sagrada para quem a considera desse modo, o que é altamente respeitável. Contudo, é normal e natural que nem todos a considerem desse modo. Da mesma forma, o respeito pela autonomia de alguém está limitado, não só ao respeito pelos outros, mas numa perspetiva médica, ao melhor interesse da pessoa que decide. Nunca um médico fará mal a um doente, nem que seja a seu pedido. Então o que está em causa na discussão da morte antecipada é se matar alguém a seu pedido pode ser feito no melhor interesse da pessoa que o solicitou. É precisamente aqui que tem que entrar a ciência. Não como juiz que sentencia a liberdade do outro, mas como um agente de promoção dessa mesma liberdade. Ou será que somos livres quando tomamos decisões baseadas em pressupostos que se vêm a verificar falaciosos?
Identificar pessoas que podem mudar de ideias, definir um período de espera diferenciado para doenças terminais e não terminais e perceber que condições pessoais podem potenciar o desejo de antecipar a morte são algumas das questões que devem ser acauteladas no âmbito da legislação sobre a morte antecipada.
Um exemplo, os estudos sobre suicídio revelam que, nos primeiros dois anos, a maioria das pessoas que pensa ou tenta o suicídio muda de ideias e deixa de desejar a morte. Esta informação deve ser tida em conta antes de decidir sobre a possibilidade de alguém com uma lesão definitiva (como a capacidade de andar ou a visão, por exemplo) pedir para morrer. O processo de adaptação pode ser muito diferente daquele que acontece nas doenças terminais. Logo, a legislação num caso e no outro não pode ser a mesma, como sucede nos projetos apresentados. Será sempre necessário um período de avaliação mais alargado e a Psicologia terá que ter um papel ativo nisso mesmo. Os psicólogos estão frequentemente envolvidos na avaliação e intervenção com pessoas com sintomas refratários, como dor e delírio, bem como no sofrimento psicológico ou existencial. Contudo, o papel destes profissionais não está previsto em nenhum dos projetos de lei.
No momento em que a legalização da morte antecipada parece ser uma inevitabilidade, importa, pelo mínimo, construir uma legislação que de facto proteja as pessoas e a sua vontade, e que diminua a probabilidade de que alguém possa sentir que pedir para morrer será a sua obrigação, senão perante a sociedade, pelo menos perante a família. Até porque um dos motivadores para o desejo de morrer passa pelo facto de a pessoa se sentir um peso para a família.
Mas sejamos crescidos, não existem soluções legislativas, ou de qualquer outra índole, que resolvam os problemas de todas as pessoas e que estejam isentas de erros. É bom que todos estejamos cientes disso mesmo.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico