Costa da Caparica e Cova do Vapor: o mar vai vencer a guerra e a catástrofe está iminente

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O eixo entre a Cova do Vapor e a Fonte da Telha será o mais fustigado pelas alterações climáticas. Estudos apontam para a subida do mar de dois metros em 70 anos. Considerando as tempestades e as flutuações de marés, uma catástrofe na zona anuncia-se. E já há realojamentos anunciados.

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Vista da área costeira em risco a partir da zona da Raposeira (Pica Galo), na freguesia da Caparica. Ao fundo, observa-se a rebentação ao largo, o que revela que a colocação de sedimentos está a funcionar.Foto SG
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Na linha da frente do Segundo Torrão a água já chegou quase a alcançar os telhados.Foto SG
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Paulo Silva (esq.) e Fernando Agostinho, presidente da mesa da assembleia-geral, aguardam a chegada de materiais para começar a ampliar a cozinha comunitária.Foto SG

O cenário traçado pelo Plano Metropolitano de Adaptação às Alterações Climáticas da Área Metropolitana de Lisboa (PMAAC-AML) concluiu que Almada será o primeiro concelho a ser fustigado na sequência das alterações climáticas e que sofrerá graves prejuízos. Segundo o plano metropolitano, além da subida da água, estão previstos eventos extremos, como tempestades e ventos fortes, efeitos que deverão ter um forte impacte em infraestruturas e na segurança das pessoas e bens. E fevereiro, mês em que historicamente ocorrem mais tempestades, está quase aí.

Os galgamentos e inundações nesta extensa zona costeira, com 16 quilómetros de litoral oceânico e 28 quilómetros de litoral no estuário do Tejo, são apontados como a ameaça principal, que exige respostas imediatas e a sensibilização das comunidades para a possibilidade de terem de recuar. Querendo isto dizer que a ocupação humana daquela zona de costa, em construções e infraestruturas, tem de passar para uma área mais interior. Os casos mais críticos são o bairro do Segundo Torrão, a Cova do Vapor - povoado que deverá ficar totalmente submerso - e, mais a sul, a Fonte da Telha. Os parques de campismo também terão de ser deslocalizados.

Ao longo dos anos têm existido medidas de mitigação, como a construção de paredões e esporões, a alimentação artificial das praias e tentativas de renaturalizar os sistemas naturais, mas as construções ilegais não param de crescer. Assistiu-se ainda a um esforço de ordenamento com o programa Polis da Costa da Caparica, mas a pressão urbanística, muita dela ilegal, é cada vez maior. O mais recente Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) dá orientações para o recuo de habitações, frentes de praia e parques de campismo, mas a inoperância salta à vista.

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Na linha da frente do Segundo Torrão a água já chegou quase a alcançar os telhados.
© SG

José Carlos Ferreira, professor da FCT-Nova e especialista em erosão costeira, alerta que "a pior fase de galgamentos e inundações vai ser observada já em fevereiro, período invernoso, com agitação marítima, aliado aos picos das marés". Historicamente, enfatiza, este é o mês em que ocorrem mais tempestades.

Fevereiro, historicamente o mês mais crítico

As alimentações artificiais das praias e o reforço dos paredões são operações pouco compreendidas pelas populações, prossegue, "porque a tendência é de a areia migrar para o mar e o resultado dos enchimentos no final do verão só começa a ser visível a partir de maio e junho do ano seguinte, quando o mar repõe alguma areia na praia". Para o técnico, é preciso sensibilizar a população para o facto de que sem enchimentos haverá galgamentos graves. Por outro lado, salienta, "estas ações podem causar uma ideia errada de segurança. As pessoas precisam de saber que estas medidas reduzem a vulnerabilidade, mas não a anulam. E, a longo prazo, serão ineficientes face à subida do nível do mar".

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Ao colocar areia nas praias e reforçando os paredões, não estamos a eliminar os riscos para as populações, até porque as estatísticas mostram que as tempestades vão ser cada vez mais fortes. A Costa da Caparica é uma planície baixa e arenosa, é uma cidade erguida abaixo do nível médio do mar, muito vulnerável a episódios extremos. Se fosse eu a decidir, começaria a pensar, a médio prazo, num cenário de relocalização em toda a frente urbana da Caparica", observou José Carlos Ferreira.

O especialista apontou ainda a necessidade de apostar em comportamentos de precaução, sobretudo nas zonas mais problemáticas, como o Bairro do Segundo Torrão e Cova do Vapor. E, mais a sul do eixo, na Fonte da Telha. "É imprescindível não intensificar ainda mais a ocupação do litoral".

Na sequência do cenário traçado pelo Plano Metropolitano de Adaptação às Alterações Climáticas da Área Metropolitana de Lisboa, aconselha que se proceda à retirada das comunidades e seus bens das zonas mais críticas, com especial urgência no Bairro do Segundo Torrão, Cova do Vapor e parque de campismo do CCL. A mesma recomendação é válida para a Fonte da Telha, com exceção da comunidade piscatória, que será recuada brevemente - os pescadores e seus descendentes já foram identificados.

Há zonas já altamente erodidas, mas que estão habitadas. No plano da AML foram identificadas várias áreas que vão sofrer mais intensamente o impacto das alterações climáticas, com a subida de dois metros do nível de água nos próximos 70 anos. "Podemos estar na iminência de uma catástrofe certa, caso se conjugue a subida das águas (consequência do degelo), com tempestades, ventos e marés cheias. Todo o fenómeno de risco será ampliado", continua.

População quer ficar na Trafaria

De acordo com o especialista, o programa para a orla costeira tem orientações muito claras: retirar as populações em risco e renaturalizar os sistemas naturais. "Mas as construções ilegais têm continuado a crescer desmesuradamente, em resultado de uma má gestão territorial. O litoral, sobretudo o domínio público hídrico, é uma espécie de terra de ninguém", acrescenta.

Na Cova do Vapor, há 30 anos, as casas eram todas de veraneio, móveis, de madeira. "Atualmente são fixas. E ilegais. À semelhança do que se verifica na Fonte da Telha. Mas as pessoas continuam a construir, porque estão à espera da inoperância do Estado. Sabem que a justiça é muito lenta, e que o crime compensa. Por isso, prevaricam. É isso que observo na Cova do Vapor e na Fonte da Telha. A população sabe que está ali ilegalmente, mas está organizada - muitos têm até advogados, na expectativa de que o Estado não aja e que um dia as construções passem a definitivas. Estamos a braços com questões morais e ilegais", acrescenta, contextualizando que "o litoral português está sujeito a muitas jurisdições, com pouca coordenação, e muitas entidades envolvidas para poucos técnicos e uma grande área territorial em risco".

A par disso, ressalta que a gestão do risco no litoral português "tem sido feita de forma reativa e não planeada, embora a situação esteja a melhorar gradualmente. Só quando há tempestades é que há um investimento. É urgente começar a fazer gestão de planeamento".

Perto da praia de São João e com vista para Lisboa, o Segundo Torrão, na freguesia da Trafaria, é um bairro clandestino onde mais de três mil pessoas vivem em condições precárias. No verão, conforme os fluxos migratórios, chegam a ser cinco mil. Paulo Silva, presidente da associação de moradores, reside ali há mais de 30 anos. Casou-se e viu os seus filhos nascerem neste bairro.

Enquanto aguardava a chegada de material para as obras de ampliação da cozinha comunitária, explica que a população sabe que corre riscos; já por várias vezes viram a água entrar nas suas casas. Mas a hipótese de realojamento não é bem-vinda por todos. O bairro nasceu há 70 anos, pela mão de pescadores. Na década de 90, começaram a chegar várias comunidades africanas.

"Vivem todos em comunidade, e há espírito de vizinhança e bairrismo. Reconhecem que as condições são precárias, mas têm assistido a melhorias, como a abertura de fossas sépticas, a distribuição de eletricidade, a construção de uma capela e de um centro com uma cozinha comunitária." Numa fase posterior, serão erguidos na área contígua ao centro comunitário dois espaços destinados à prestação de cuidados de saúde. Mas são apenas medidas para mitigar a precariedade daqueles que ali vivem.

A autarquia já informou a comunidade da inevitabilidade de proceder a demolições. Só não se sabe é quando. Certo é que já foi assinado um protocolo para a construção de 3000 fogos no Monte da Caparica, que servirão para realojar os moradores. Mas a maioria chegou àquele bairro ainda criança. Casaram-se e tiveram filhos ali. Permanecer no Segundo Torrão é, para muitos, a forma de garantir melhor qualidade de vida aos filhos, uma vez que não têm de pagar renda.

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Paulo Silva (esq.) e Fernando Agostinho, presidente da mesa da assembleia-geral, aguardam a chegada de materiais para começar a ampliar a cozinha comunitária.
© SG

Os moradores partilham com Paulo Silva os seus receios. "Têm aqui a sua rede de amizades. Sabem que viver neste bairro para sempre poderá não ser a solução, mas, a terem de mudar, gostavam de permanecer na Trafaria. E o que está em cima da mesa é serem colocados num bairro social no Monte da Caparica. Os que aqui vivem têm medo de perder a sua identidade e proximidade com os vizinhos. Todos têm ligações a esta terra, ao mar, ao bairro, portanto seria muito importante que mantivessem as suas raízes, o sentimento de vizinhança. Sair daqui para um prédio implica uma nova comunidade, implica afastamento, perda de identidade", constata o presidente da associação.

Numa perspetiva mais otimista, José Carlos Ferreira observa que as autoridades estão paulatinamente a começar a pensar numa estratégia eficiente para o risco de erosão costeira, "e sabem que precisam do conhecimento dos académicos". Exemplo disso foi a formalização da criação de um observatório e de um centro de estudos de avaliação de riscos costeiros, que deverá estar concluído em 2020.

Início da luta às alterações climáticas

Apresentado em dezembro de 2019, o Observatório de Avaliação de Riscos Costeiros resulta de uma parceria entre a Câmara Municipal de Almada, a Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (FCT-Nova) e o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC). "Com este observatório, a gestão do risco vai passar dos mais de mil estudos já realizados à ação. É uma iniciativa muito importante, uma vez que vai permitir criar modelos de adaptação ao que aí vem. Vamos usar a informação recolhida para avaliar os riscos, mas também para estudar estratégias que possam ser adotadas para prevenir e reduzir o perigo", refere José Carlos Ferreira.

O trabalho realizado pelo novo observatório deverá resultar num conjunto de projetos a serem desenvolvidos no âmbito de candidaturas a fundos de investigação nacionais e europeus.