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Manuel Resende (1948-2020): o poeta que não desperdiçava a poesia

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No ano em que Manuel Resende completou 70 anos, passavam 50 anos sobre o Maio de 1968. Nesse ano, 2018, o poeta do Porto que vivia em Lisboa, e que desapareceu esta semana na sequência de um acidente vascular cerebral, fazia chegar ao mercado "Poesia Reunida".

A antologia, editada pela Cotovia, é uma reunião de 250 páginas cheias de poemas dispersos e inéditos. A data de publicação não é um acaso: o movimento do maio de 68, bandeira de liberdade, foi marcante para ele e para toda a sua geração. Representou a rutura total com a sociedade em que nasceu, "uma luz de revolta e insubmissão, sobretudo para quem assumia uma filiação surrealista", diria o poeta numa entrevista ao Jornal de Letras (JL).

No dia em que morreu, a sua editora definiu-o como "um dos maiores poetas portugueses", alguém que dedicou grande parte da sua vida à poesia, "quer como autor, quer como tradutor". Exemplo disso é a tradução de poemas completos de Konstantínos Kaváfis, ou da obra maior de Karl Marx, "O Capital", ou de "A Caça ao Snark", de Lewis Carroll. Apesar de licenciado em Engenharia, profissão que nunca exerceu, era perito em grego moderno.

Em nome próprio publicou apenas quatro obras ao longo de quase 40 anos de carreira: "Natureza Morta com Desodorizante" (1983), "Em Qualquer Lugar" (1988) e "O Mundo Clamoroso, Ainda" (2004) e a já referida "Poesia Reunida".

A facilidade que tinha em dominar várias línguas levou-o a concorrer à União Europeia. Quando foi escolhido abandonou o seu trabalho da redação do Jornal de Notícias do Porto, onde trabalhou como jornalista de economia durante seis anos. E onde viria a reencontrar o amigo Manuel António Pina.

As influências de Manuel António Pina

É a Manuel António Pina (1943-2012) que Manuel Resende deve a sua primeira obra publicada. Publicar não era objetivo do autor, mas o poeta e prémio Camões sugeriu o seu nome a Vasco Graça Moura, que estava então na Imprensa Nacional e queria editar uma coleção de poesia. A reunião destes três poetas do Porto aconteceu em 1985.

Pina era amigo de Resende e uma grande influência. "Gostava muito de falar com ele. Aliás, toda a gente gostava muito de falar com o Pina. Era um grande conversador e ficámos muito amigos. Foi ele quem me revelou os poetas americanos da Beat Generation, por exemplo. Ou Carl Sandburg. O [T. S.] Eliot, o Ezra Pound. Ele papava isso tudo. E isso distinguia-o porque naquela altura a cultura era a francesa. E ele era uma lufada de ar fresco", recordou ao jornal "Público" em 2018.

Em "Poesia Reunida", o autor assume ter "roubado" um poema a Pina. Chama-se "Deve estar a brincar, senhor Feynman". E diz:"Onde estão as partículas elementares / Quando a gente não está a olhar? / A questão é de se pôr, só que elas estão, / Ou qualquer coisa, não sei o quê, em qualquer lugar."

Mas Pina não foi a única referência. O "roubo" e as influências permitiram que as suas obras se tornassem distintas. "A Literatura não é um combate, é um um ato de amor. Aceito todas as influências. Afirmo-me com o que recebo. É daí que vem o gosto pela tradução, a procura de me exprimir e ser outro pela voz alheia."

Descomprometido com a poesia e comprometido com o mundo

A poesia de Manuel Resende é assim, "uma colagem". "Desde Sófocles a Rui Veloso e a Sérgio Godinho. Tem Beatles, André Gide, Breton, Cesariny, Jorge de Sena... As coisas mais díspares. E as formas poéticas são as mais desencontradas e aparentemente desconexas. Atiro aquilo para lá e de vez em quando começa a sair um soneto", ironizou ao Público.

Além destas influências, é percetível que Pessoa, O'Neill, Kaváfis, Aquilino, Homero e Adília Lopes foram também outras referências para construir uma obra que, no geral, remete para sonhos e utopias, para memórias e infância.

O que poderia justificar o tempo que separou "O Mundo Clamoroso, ainda" (2004) e "Poesia Reunida" (2018), foi o que o Público tentou saber nessa entrevista. E Manuel Resende não hesitou: "Começou muito cedo, mas não me entreguei completamente... Porquê? As condições do fabrico da poesia são muito más." O descomprometimento com que encarou a poesia e a precariedade que lhe associa, tanto ao nível da sua produção como ao nível do lugar que ocupa no mundo, é a justificação para os quatro livros que publicou em 71 anos de vida.

Assumidamente descomprometido com a poesia, afirmou ter-se comprometido com o mundo. Quem o disse também foi Osvaldo M. Silvestre no posfácio desta poesia reunida: "Se algo define a poesia de Manuel Resende, é a forma como não evita as solicitações da História, que tende, aliás, a grafar com maiúscula, num gesto que se foi tornando raro no panorama da poesia portuguesa recente."

O poeta concordou com a citação. "É sempre a pensar nas coisas, perdoe a presunção, nas coisas mais essenciais da vida". E acrescenta: "A poesia é muita rara para ser desperdiçada com porcarias. Essas coisas são o amor, a liberdade...". O tempo também mereceu a sua atenção. "Falo muito do tempo, porque o tempo é a natureza de que somos feitos. O ser humano é um animal muito delicado e frágil. Tem de aprender tudo."