Operação Marquês: os mistérios da carta em branco na PT e da cláusula de milhões no TGV

Dois advogados, Lino Torgal e Rui Medeiros, vão tentar explicar, esta sexta-feira, ao juiz Ivo Rosa dois dos maiores mistérios do processo que o Ministério Público associa a atos de corrupção de José Sócrates.

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Seis anos depois do início da Operação Marquês, e já com uma acusação deduzida, há ainda dois mistérios que, até agora, ninguém, nem a investigação, nem as testemunhas ouvidas, conseguiu solucionar: o primeiro diz respeito a uma carta em branco que o advogado Sérvulo Correia, como representante do Estado, levou para a assembleia geral da PT de março de 2007 que travou a OPA da PT; o segundo diz respeito à introdução de uma cláusula de 190 milhões de euros que o Estado ficou obrigado a pagar ao consórcio TGV, uma vez que o concurso foi cancelado.

Esta sexta-feira, o juiz Ivo Rosa vai ouvir duas personagens centrais, os quais podem - ou não - trazer alguma luz: os advogados Rui Medeiros e Lino Torgal, ambos, à altura dos factos, integravam a sociedade de advogado Sérvulo Correia & Associados, que trabalhava para o governo de José Sócrates.

Foi o próprio fundador da sociedade de advogados, José Manuel Sérvulo Correia, que em abril de 2017, na qualidade de testemunha, contou aos procuradores Rosário Teixeira e Inês Bonina que o convite que recebeu para representar o Estado na assembleia geral da PT foi-lhe endereçado, não por um ministro ou secretário de Estado (das Obras Públicas ou Finanças, por exemplo), mas sim"informalmente através de dois colegas, que colaboravam no trabalho de assessoria ao Estado" e foi também através deles que "recebeu, por via verbal, as indicações necessárias para o sentido de voto que deveria manifestar".

"Perguntado se não estranhou a circunstância de ter recebido esse convite por indireta e ter recebido as instruções pela mesma via, sem que tenha havido uma prévia reunião para definir as instruções sobre o sentido de voto com algum responsável do poder político, respondeu Sérvulo Correia que confiava nos seus colegas", lê-se no auto de inquirição da testemunha, de abril de 2017.

Quanto ao voto exercido pelo Estado na tal Assembleia Geral, de abstenção, o advogado foi questionado sobre quem lhe transmitiu essa orientação, já que a respetiva carta mondadeira e o despacho que o nomeou não continham instruções claras, Sérvulo Correia respondeu ter feito uma "interpretação" das circunstâncias, isto é, uma vez que na altura existia um contencioso entre o Estado português e a Comissão Europeia sobre o uso das "golden shares" (entendidas como ilegais à luz do direito europeu), considerou que a posição mais correta seria a abstenção.

Então, questionaram os procuradores, "como é que nessa lógica se pode interpretar o facto de cerca de três anos depois, com o mesmo governo, a golden-share tenha sido exercida no sentido de bloquear uma decisão, no caso a da venda da participação na Vivo", no Brasil, ao espanhóis da Telefónica? O advogado limitou-se a dizer que, nessa altura, já não era representante do Estado.

A OPA da SONAE à PT é um dos pontos centrais no processo da Operação Marquês. Segundo a acusação, José Sócrates e Ricardo Salgado terão concebido um plano para travar a Oferta Pública de Aquisição da SONAE, de forma a favorecer os interesses do Grupo Espírito Santo. Recorde-se que, após o fim da OPA, a PT foi obrigada a criar a PT Multimédia, ficando o GES com uma participação nesta empresa de centenas de milhões de euros. Ao mesmo tempo, no Brasil, a PT vendeu 50% da operadora Vivo, entrando posteriormente no capital de uma outra operadora de telecomunicações, a Oi. Estas manobras financeiras também resultaram na distribuição de dividendos aos aacionistas. Como contrapartida, de acordo com o Ministério Público, José Sócrates terá recebido 12 milhões de euros.

O facto de o representante do Estado na Assembleia Geral não levar uma instrução clara, deixou suspeita de que, caso os accionistas privados aceitassem a OPA, então o Estado vetaria a operação, já que não ia de encontro aos interesses do BES. Aliás, nas mesmas declarações prestadas ao MP Sérvulo Correia afirmou ter levado consigo dois números de telemóvel para eventuais contactos de última hora: um do então ministro Mário Lino, o segundo de Carlos Costa Pina, antigo secretário de Estado das Finanças.

Também a ordem das votações suscitou muita controvérsia: o então presidente da Assembleia Geral da PT, Menezes Cordeiro, decidiu colocar o Estado a votar depois de todos os acionistas o terem feito e não, como seria de esperar, ao mesmo tempo que os demais representantes do capital da PT.

A cláusula de 190 milhões
Mas, além da PT, os advogados Rui Medeiros e Lino Torgal também deverão ser questionados pelo juiz Ivo Rosa sobre o concurso dTGVGV e a famosa cláusula 102.3 do contrato, que previu uma indemnização de 190 milhões de euros para o consórcio vencedor do concurso, caso o Estado viesse a desistir da construção da ligação de alta velocidade. O que acabaria por acontecer, levando o Estado e o consórcio Elos (onde o Grupo Lena estava presente) para um processo de arbitragem

Já ouvidos na fase de instrução, nem Mário Lino, antigo ministro das Obras Públicas, nem Carlos Costa Pina ou Sérgio Monteiro - secretário de Estado dos Transportes, durante o governo de Pedro Passos Coelho - souberam explicar a origem de tal cláusula. Na qualidade de advogados que assessoram o Estado no concurso dTGVGV, Rui Medeiros e Lino Torgal deverão ser questionados pelo juiz sobre a matéria.

Além de Sérvulo Correia, o concurso do TGV contou ainda com mais dois escritórios de advogados ligados às partes: a Vieira de Almeida representou o consórcio Elos, enquanto o júri do concurso foi assessorado pela sociedade Vera Jardim, Sampaio&Associados.

Esta quinta-feira, Joaquim Paulo da Conceição, administrador-executivo do Grupo Lena, que chegou a ser arguido da Operação Marquês, foi chamado a depor na fase de instrução pelo advogado do ex-administrador do grupo Lena Joaquim Barroca e das empresas do grupo arguidas neste processo, que considerou essencial o seu depoimento após o antigo primeiro-ministro ter sido interrogado nessa fase.

Para o advogado Castanheira Neves, o depoimento de Joaquim Paulo era importante "para esclarecer toda a fatualidade inerente às sociedades [do grupo Lena]". O advogado disse que chamou Joaquim Paulo a depor depois de terem sido "projetados para o processo todos os factos que estavam por esclarecer". Joaquim Paulo da Conceição era o representante legal do grupo leiriense, mas acabou por não ser visado no processo.

O debate instrutório está marcado para os dias 4, 5, 6 e 9 de março, podendo prolongar-se para 11, 12 e 13 do mesmo mês. O processo Operação Marquês tem 28 arguidos – 19 pessoas e nove empresas – pela prática de 188 de crimes económico-financeiros.

Notícia atualizada às 17h03, com retificação do nome do então presidente da Assembleia Geral da PT.