"Já vimos uma espécie de Brexit quando viemos para cá"

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Joao Matos e Margarida MedeirosFoto Ivete Carneiro/jn
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Joao LuísFoto Ivete Carneiro/jn
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Marta MonteiroFoto Ivete Carneiro/jn

Cidália vai meter os papéis para a nacionalidade britânica. Tem já o email do Governo britânico que lhe garante o estatuto de residente permanente. Marta conseguiu o estatuto de pré-residente.

Quer ficar mais um ano, tempo de passar a permanente e, talvez, marchar para a nacionalidade. Só para ter duas e duas vezes mais hipóteses de construir um futuro. Os pais de João Luís estão a rasar os 90 anos, são permanentes e vão ficar. Porque Londres dá-lhes aquilo que Santana nunca lhes conseguiria dar. João Luís tem tempo. Como Cândida. E Margarida tem medo. Eles têm décadas de Reino Unido, ela tem meses, poucos, mas a consciência de que pode ter feito um esforço gigantesco para sair de S. Miguel para nada.

São retratos avulso de portugueses apanhados na curva pelo Brexit e pela incerteza do futuro. Cada um no seu estádio, a maioria serenos e tranquilos e, no caso de João Luís, com aquela estranha sensação de "déjà-vu".

Conversamos pontuados pelos sismos dos comboios a arrancar da estação de Vauxhall, no "borough" de Lambeth, aquela espécie de Portugal adaptado a Londres. Passam-nos literalmente por cima das cabeças, estamos naqueles armazéns abobadados que eram oficinas numa zona mal frequentada e que hoje são restaurantes, dois deles de João Luís, de 56 anos, um dos nomes do grupo Madeira, o gigantismo construído à mão de um luso que quis ir mais longe e que hoje lidera a produção de pastéis de nata em Londres.

"Sabe, nós já vimos uma espécie de Brexit. Quando viemos para cá", corria o ano de 1979, "não podia ser de qualquer maneira". Era preciso casa e contrato em troca de um visto a renovar até o bom comportamento dar a residência definitiva e a nacionalidade a quem a quisesse. "Agora, vamos ver o passado". Porque na altura Portugal é que não estava na então Comunidade Europeia. Não está assustado e ainda nem tratou de pedir o estatuto de residente, porque não vão mandar embora ninguém.

"Quem é que vai limpar estes prédios todos que estão a construir? É preciso gente de baixa qualificação porque são eles que ajudam os grandes a fazer. Se o pequeno falhar, o grande cai". Tão simples quanto isso.

Desabrida, Cândida Ramos, de 55 anos, 25 de Reino Unido, 15 de uma loja que concentra as saudades dos portugueses, "A Serrana", de Stockwell, no mesmo "borough" de Lambeth, é dolorosamente direta. "O Brexit vai pôr fora quem está a dar interesse ao país? Pode pôr fora os que estão aí a coisar pela rainha, chamamos-lhes os empregados da rainha, que não fazem nada e têm aquele xis à semana ou ao mês, nem sei..."

E se João Luís tem a certeza de que o drama é a mão de obra, Cândida está certa que importar Portugal para os paladares da comunidade vai ser mais difícil. Já é. Conta de camiões atrasados na fronteira, de papelada inédita, dos exportadores que cortaram a produção para exportação, mas fala também, e sobretudo, daquele fantasma dos impostos. As taxas que ninguém sabe como vão ser. Os preços das coisas que vão subir e as pessoas que vão deixar de comprá-las porque os ordenados não sobem como os impostos e de um futuro, quem sabe, com menos funcionários.

Funcionários. João Luís vê-se à nora para achá-los "desde que houve essa palavra Brexit". Antigamente, apareciam-lhe dez ou 20 por semana. Agora, é mais fácil encontrar reformados. Mesma ladainha na "Serrana".

Atrás do balcão, João Matos, açoriano que já vai na segunda vida em Londres, atira-nos que o medo é em Portugal, que aqui vai-se indo e vai-se vendo. Margarida Medeiros, o amor que João arrastou de S. Miguel, é mais descrente. É da novidade. Está empregada num hotel e espera, como ele, vai para vários dias, que os serviços lhe respondam afirmativamente ao pedido de estatuto de pré-residente. Ainda estima que atirou o passado às urtigas e que emigrar é um passo dantesco que merece sucesso. Ter de desistir por força de um Brexit que mal explica desassossega-a.

Resistir à incerteza

Cidália Eusébio é enfermeira e doutoranda. Tem o conforto do apoio do National Health Service, que, forte dos seus milhares de funcionários europeus, guiou-os no processo de registo no "Settlement Scheme". Marta Monteiro também. O que aí vem? Talvez uma economia em recuo, "as grandes empresas a sair, por alguma razão", diz Cidália, "todos os fundos que a Europa dá ao Reino Unido para investigação" que se podem perder e prejudicar a qualidade do serviço de saúde, que vive dela, da investigação, diz Marta, o que vai acontecer aos muitos que "vêm investigar para cá", diz, de novo, Cidália. E os bilhetes de avião para ir a casa com regularidade. Agora, é Marta que fala, Marta que tem um sonho, o de fazer o que quer, mas em Portugal. O Brexit tornou-o incerto. "Até agora, tinha um futuro que eu achava que podia ser brilhante, que era fazer um pé de meia para começar a vida de forma diferente do que a que teria se estivesse em Portugal. Agora, não sei se tenho".

Não obstante, não trocam a incerteza pelo Porto de Marta ou pela Fátima de Cidália. Vivem na Londres central, no meio académico que lhes abre portas, no mundo da saúde onde se dão ao luxo de escolher o serviço onde preferem trabalhar e onde ganham um ordenado que Portugal nunca lhes dará.