Verdade Envenenada: o teflon no sangue de toda a gente
by Daniel DeusdadoTeflon. Bom para garantir que os alimentos não ficam colados às frigideiras e tachos quentes. Igualmente usado em alguma roupa simultaneamente quente e impermeável (tipo "gore-tex"). Faz parte da composição de alguns detergentes. E de repelente de insetos. E está em muitos plásticos e tantas outras coisas que o tornou presente no sangue de praticamente todos os norte-americanos e de centenas de milhões de pessoas por todo o mundo.
Esta é a história do PFOA-C8 - ácido perfluorooctanóico, inventado em 1945 nos Estados Unidos e cuja ingestão acumulada ao longo da vida está por determinar. Tornou-se notícia porque a primeira batalha jurídica contra o "teflon" foi finalmente vencida em 2016 por um advogado norte-americano, Robert Billot.
A sua saga gerou um documentário no Netflix , "The Devil We know: como a DuPont envenenou o mundo inteiro com o teflon" (infelizmente já não disponível). Recentemente o filme "Dark Waters - Verdade Envenenada", esteve durante o mês de janeiro nas salas portuguesas (ainda permanece no Porto e Guimarães), protagonizado por Mark Ruffalo e Anne Hathaway. O caso "teflon" foi ainda narrado pelo acutilante "The Intercept", e depois pelo "The New York Times".
Inicialmente criado como isolante dos tanques militares, o "teflon" veio parar ao uso doméstico nos anos 60, apesar dos testes laboratoriais das empresas químicas começarem a demonstrar que o PFOA-C8 causava tumores testiculares, pancreáticos e hepáticos em ratos de laboratório.
Em consequência dos riscos para os seres humanos, a 3M desistiu da sua produção no ano 2000 quando finalmente a Agência de Proteção do Ambiente norte-americano (EPA) exigiu às empresas uma avaliação mais rigorosa dos efeitos do químico.
Mas, ao contrário da 3M, a DuPont passou a assegurar vendas estimadas em mais de mil milhões de dólares por ano com este produto, apesar de na sua linha de produção de teflon vários funcionários terem problemas de saúde graves, incluindo grávidas.
O escândalo teflon só se tornou visível depois das queixas de um produtor de gado - vizinho da DuPont, em Parkersburg, Virgínia Ocidental, - ver morrer 200 vacas ao ingerirem água do rio contaminada pela fábrica química. Em simultâneo, tanto o agricultor como a sua mulher contraíram cancros (ele já faleceu).
Depois de décadas a tentar ignorar o caso, a DuPont é confrontada pelo advogado Robert Billot (ele próprio membro de uma sociedade de advogados que trabalhava para as maiores químicas do mundo) que acaba por aceitar a defesa do agricultor envenenado e falido.
Aqui chegados: esta história é absolutamente desoladora e, ao mesmo tempo, essencial para percebermos em que mundo vivemos.
Em primeiro lugar o caso "teflon" mostra que só são proibidos no mundo inteiro os químicos que, comprovadamente, matam pessoas ou provocam danos graves na sua saúde. Até esta prova estar irrefutavelmente confirmada, estamos no território da absoluta "inovação" e onde os organismos de controlo - sejam as Agências de Proteção do Ambiente ou outros - se limitam a deixar entrar no mercado as inovações que, até prova em contrário, não tragam danos para a saúde humana. Só que essa prova surge apenas por via das vítimas - e muitas vezes já é tarde demais.
Este caso demonstra igualmente como o tempo joga a favor de quem polui ou provoca danos irreversíveis. Os mil milhões de faturação anual da DuPont com o "teflon" são astronomicamente superiores à indemnização que a empresa química acabou por pagar (670 milhões de dólares) aos 3500 casos de contaminação sanguínea verificados em Parkersburg.
Em segundo lugar, a DuPont só foi condenada porque o advogado Robert Billot conseguiu provar que a substância era danosa para os seres humanos em virtude dos estudos que a própria DuPont tinha efetuado nos anos 60 - e a que ele teve acesso por ordem judicial. Ou seja, não havia qualquer estudo público exceto o da DuPont. Aliás, se o estudo do teflon dependesse desse financiamento público, não teria havido qualquer caso porque os organismos públicos norte-americanos não os fazem em grande escala. Não havia sequer dados para provar a má-fé da empresa. Mais: casos como estes levam as grandes empresas sem responsabilidade social a não estudarem nada. Se não houver conhecimento, não pode haver má-fé. E sobretudo não haverá fugas de informação que as incrimine.
Foi pela pressão junto da opinião pública que a DuPont aceitou inicialmente pagar 70 milhões de dólares para compensar os habitantes de Parkersburg do envenenamento das águas e do ambiente da cidade.
Só que o advogado Robert Billot usou-os de uma forma inteligente: dividiu a indemnização entre todos os habitantes de Parkersburg e, em contrapartida, convidou-os a fazer análises ao sangue no momento de receberem a indemnização individual de 400 dólares. Apareceram 70 mil pessoas, crianças incluídas.
E agora repare-se: a DuPont aceitou, durante as negociações fora de tribunal, respeitar as conclusões das análises ao sangue dos habitantes e atuar em conformidade com os resultados.
Quanto tempo demoraram os resultados das análises a surgir? Sete anos.
Ao fim desta colossal espera, já o advogado estava quase falido, com a saúde desfeita e sem o respeito dos habitantes de Parkersburg. Mas os resultados eram claros: 3500 casos de contaminação em Parkersburg com PFOA-C8.
Quando finalmente chegou a hora de respeitar o acordo de mediação, a multinacional química voltou atrás e recusou negociar as indemnizações. Robert Billot teria de processar a DuPont por cada um dos 3500 casos, participar em milhares de audiências, e depois em milhares de julgamentos. Uma tarefa pura e simplesmente impossível de realizar em tempo útil para a vida destes lesados da DuPont.
Felizmente há histórias que acabam, digamos, razoavelmente. Robert Billot não desistiu. Começou por ganhar o primeiro julgamento, e depois o segundo, e a seguir o terceiro. Finalmente a DuPont percebeu que ia destruir ainda mais a sua limitada reputação e resolveu pagar 670 milhões de uma só vez a todas as vítimas. Mesmo assim pouco mais de metade do valor que faturava num só ano em teflon. E assim o caso se arrastou até 2016.
Repare-se: quase 60 anos após o conhecimento das consequências da produção e uso do PFOA-CB (teflon), finalmente a multinacional química perdeu em tribunal devido ao estoicismo de um advogado. Sem isso, esta história continuaria sem ser do conhecimento público.
Entretanto, a (nova) DowDuPont tentou alterar o PFOA-C8 pelo Gen-X mas não há certezas sobre se algo mudou do ponto de vista toxicológico. A produção, essa, mantém-se à escala global.
Outro dado importante: o PFOA-C8 ainda não entrou na lista dos "poluentes orgânicos persistentes" (conhecidos como os químicos eternos) da Convenção de Estocolmo, criada pelas Nações Unidas. O "teflon" tem sido encontrado em coisas tão diversas como resíduos industriais, carpetes resistentes a manchas ou líquidos de limpeza de carpetes, muitos tipo sde plásticos, têxteis especiais e obviamente em tachos, panelas e frigideiras. Os estudos assinalam o potencial de gerar cancro renal e testicular, problemas na tiroide e malformações nos fetos.
Em Peterburgspark, cidade onde o principal foco de contaminação surgiu, os habitantes desprezaram durante muito tempo Robert Billot e os cidadãos que o ajudavam, porque isso afetava a joia da cidade, a fábrica da DuPont, uma das melhores empresas onde se podia trabalhar.
Aina hoje continuamos a estrelar ovos, e tudo o resto, nas frigideiras e panelas com teflon. E haverá milhares de outros químicos que, em conjunto, geram uma bioacumulação no corpo humano que estarão na origem de muitos cancros de que desconhecemos a origem.
Duas perguntas: quem regula realmente a indústria química? Onde nos leva tudo isto?