Vivemos uma ‘psicopatia difusa’ na política brasileira, diz Contardo Calligaris

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PUBLICADO NO UNISINOS

Dor de amor, dor de rejeição, dor de desânimo. Queixas semelhantes podem ser trazidas por diversas pessoas, mas cada vivência será diferente.

Décadas de prática no consultório não fizeram que o psicanalista, ensaísta e escritor Contardo Calligaris deixasse de se surpreender com as falas dos pacientes. Sua escuta é fundamentada no imprevisível e singular que cada pessoa traz ao falar de seu sofrimento. Tanto que uma de suas principais sugestões aos psicoterapeutas é que se mantenham curiosos pelo humano.

Afinal, os humanos são variados, apoiados em crenças distintas e afetados de maneira diversificada pelos eventos da vida. A falta de sono que incomoda uma pessoa todas as noites pode ser a garantia de emprego para um vigilante. A obsessão por detalhes que traz complicação à rotina de um pode ser perfeitamente bem-vinda em uma tarefa meticulosa.

Dessa pluralidade de existências extraímos a riqueza de nossas relações. Mas o que fazer quando a diferença é “caçada” como uma inimiga, com incentivo ao seu apagamento? E como lidar com os conflitos internos de cada um que se emaranham na convivência social, a ponto de comprometer os laços?

Algumas das recomendações a profissionais de primeira viagem estavam compiladas no livro Cartas a um jovem terapeuta, que ganhou nova edição em 2019 pela editora Planeta, além de conteúdos inéditos. Mais do que orientações específicas para a clínica, o psicanalista costura teoria e prática em lições sobre escuta e acolhimento, o que interessa também a quem não é da área.

Em entrevista ao HuffPost, Calligaris comenta o momento político-social do País, as demonstrações de intolerância no dia a dia e o desânimo que tem se abatido sobre muitos brasileiros. Italiano radicado no Brasil, ele aborda os discursos nacionalistas crescentes em alguns países, a rejeição a imigrantes e o quanto nós, enquanto humanos, nos desconhecemos e somos estrangeiros em nossa própria casa.

A entrevista é de Amanda Mont’Alvão Veloso, publicada por HuffPost, 08-12-2019.

Eis a entrevista.

Como você vê o discurso de autocuidado vigente na sociedade contemporânea, frequentemente associado ao consumo e a tratamentos que prometem rápida solução?

A tradição terapêutica da cultura ocidental é dupla. Tem o diálogo com o outro (desde o amigo, o sábio, o confessor, o diretor de consciência até os psicoterapeutas), e também tem a autoajuda, o exame de consciência, a leitura… Então, a autoajuda não é uma invenção recente. E há obras de autoajuda que são ótimas. Agora, sempre houve e haverá pessoas vendendo um biotônico para tratar câncer ou uma prece para curar as dores do amor.

No livro Cartas a um jovem terapeuta, você afirma que nenhuma psicoterapia deveria almejar a dependência do paciente. Por que a autonomia do paciente é tão importante para o tratamento psicanalítico?

A autonomia é um dos ideais da modernidade. Nós mal conseguimos imaginar alguém que esteja bem e não seja autônomo. Concordo que é um ideal um pouco ilusório; sempre somos autônomos com a ajuda de alguns outros, mas uma terapia, seja ela qual for, que almejasse a dependência seria facilmente uma vigarice. Venha me ver (e me pague) a cada dia, para sempre…

Seu livro enfatiza a importância da curiosidade pelo humano como premissa para se tornar um psicoterapeuta, bem como os cuidados com as crenças e convicções pessoais. Temos visto a demanda, entre pacientes, por profissionais específicos, como psicólogos e psicanalistas feministas ou LGBTs, apenas citando dois exemplos. Em paralelo, observamos também a criação de linhas psicoterápicas religiosas ou com algum atributo identitário. O que essas ofertas e demandas têm a dizer sobre como lidamos com o sofrimento?

Na hora de escolher um terapeuta, entendo que a gente procure uma pessoa que, à primeira vista, pareça ter uma experiência de vida “parecida” com a nossa. É como se a gente quisesse garantir que o terapeuta terá empatia conosco. E também garantir que não seremos desrespeitados. Agora, em tese, para o terapeuta, isso não é relevante: ele/ela não tem uma identidade de grupo e ainda menos uma crença, seja ela qual for, que intervenham na escuta ou na direção do tratamento. É possível, claro, que um agitador ache que a cura para um deprimido seja se tornar militante político. Ou que um pastor ache que a cura da psicose seja exorcismo e conversão. Mas essas duas pessoas, consideradas como terapeutas, seriam charlatães.

As notificações de suicídio demonstram aumento nas taxas entre os jovens brasileiros. A quais fatores você atribui este cenário?

Em geral, acho a adolescência uma época infernalmente difícil, uma espécie de moratória em vista de quê? De um vestibular? De uma vida profissional morna e que o adolescente frequentemente acha ou imagina chata? Também acho que nossos adolescentes desejam pequeno, são razoáveis além da conta.

O noticiário brasileiro com frequência estampa declarações de lideranças que invalidam ou tripudiam o sofrimento alheio. Estamos vivendo uma época de perversidade na política e nas relações?

Eu diria psicopatia, mais do que perversidade, mas o resultado é o mesmo. A psicopatia é a indiferença diante do sofrimento dos outros e desrespeito de qualquer regra. Uma psicopatia difusa, no Brasil, não deveria nos surpreender: a cultura mal reconhece a ideia de bem ou interesse públicos — só entende bem e interesse pessoal ou familiar. Nesse quadro, a lei não é internalizada, não se transforma numa exigência interna — ela é sempre apenas uma exigência externa que se trata de burlar assim que for possível. O triunfo dessa herança nacional se dá quando o Executivo parece legislar por interesse familiar ou pessoal de quem legisla (tipo, abolir radares de controle de velocidade porque o presidente levou multas, ou acabar com proibição de pesca em viveiros pela mesma razão).

Ao mesmo tempo, percebemos um efeito de desespero e revolta a cada “notícia ruim”, de forma que muitas pessoas sentem a necessidade de se alienar do que está acontecendo como forma de sobrevivência. O que pode ser feito para preservar um “mínimo de saúde mental” diante da realidade que soa absurda?

O mais difícil, para mim, é lidar com declarações públicas (por exemplo, do presidente) cuja lógica interna me é profundamente estrangeira. Nesse caso, a tentação é grande de fazer de conta que estamos em outro mundo — mudar-se para Portugal (ou Miami) ou, então, viver na nossa bolha.

Por que tem sido tão difícil (até mesmo inviável) conversar no dia a dia, especialmente com quem pensa diferente?

Para muitos, sentir que a gente pertence a um grupo é mais importante do que argumentar e debater — você imagina uma verdadeira conversa sobre quem poderia jogar melhor entre torcidas de futebol opostas?

O que seria necessário, pensando na sociedade brasileira, para retornarmos a uma “convivência pacífica” no dissenso?

De fato, chegar a uma “convivência pacífica” não parece ser a esperança de ninguém. Ao contrário, uma maioria quer ditar regras aos outros, constrangê-los, limitar sua liberdade, ameaçá-los. Politicamente, o que seria necessário seria o surgimento de um liberalismo laico clássico, que no Brasil não é uma tradição.

O conservadorismo tem avançado sobre as pautas de costumes e teve uma relevância decisiva nas últimas eleições brasileiras. A moral e a religião de alguns têm sido usadas para definir, para toda a população, o que é permitido e o que não é, inclusive com o reforço de preconceitos. Como você vê a ascensão deste discurso e qual a importância da singularidade?

Esse discurso começou dois milênios atrás. A gente podia esperar que, com o século 18, ele estivesse perdendo influência. Talvez esteja, e apenas estejamos assistindo a alguns sobressaltos finais. Seja como for, o cristianismo inventou algo que não estava no judaísmo e ainda menos no paganismo: a sanha missionária. Além de serem exclusivistas (não haverá outro deus fora de mim), o cristianismo, e o islã a seguir, se constituem como religiões que querem conquistar e converter. Estamos ainda nessa. Claro, houve a grande tradição libertina, as Luzes do século 18, houve 1968 e a liberação dos costumes nas últimas décadas, mas a luta contra a sanha missionária será longa, longa…

Vemos esforços para combater fake news por meio da checagem de notícias e de argumentos, mas a adesão dos leitores parece resistir a qualquer tática racional. A pós-verdade se relaciona com uma espécie de “inflação” do mundo interno daqueles que compartilham de uma crença? Qual a melhor forma de lidarmos com este cenário de versões declaradamente mentirosas?

Pegue o artigo “Bias” (viés) da Wikipedia em inglês: você achará uma lista impressionante (embora ainda incompleta) dos vieses que atrapalham nossa capacidade racional de pensar e conhecer. A internet nos apresenta a cada instante pretextos para ceder a nossos vieses e preconceitos contra os fatos ou a razão. Acredito no trabalho da imprensa e talvez no da Justiça – embora, nesse caso, seja muito difícil a Justiça agir sem ameaçar a liberdade de expressão.

A noção de “estrangeiro” frequentemente é restrita a questões geográficas. Poderia falar um pouco sobre o estrangeiro que habita cada um de nós?

Sempre achei um pouco ridícula qualquer forma de nacionalismo (ou, pior ainda, de patriotismo). Em geral, quem precisa se defender contra os estrangeiros está sobretudo tentando se defender contra o estrangeiro dentro dele. É uma regra sem exceções em psicologia dinâmica. O homofóbico, por exemplo, sempre está se defendendo contra sua própria homossexualidade mal reprimida. O moralista está sempre se defendendo contra suas fantasias orgiásticas.