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Foto: Joana Berwanger/Sul21

Cultura do “cancelamento” na esquerda prejudica disputa pelo público desesperado por diálogo

"A esquerda até quer a multidão, desde que seja controlada por bandeiras", diz Rosana Pinheiro-Machado

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Jornal GGN – A antropóloga Rosana Pinheiro-Machado disse em entrevista ao site El País que a cultura do “cancelamento” em meio a esquerda é ilógica e prejudicial à disputa, com a extrema-direita, pelo eleitorado desesperado por diálogo.

Segundo ela, a esquerda tradicional, institucionalizada, peca de dois modos gritantes: não renovando seus quadros partidários e rejeitando o diálogo com o público que pendeu para o lado de Jair Bolsonaro depois da criminalização e golpe dados nos governos do PT nos últimos anos.

A interrupção do diálogo não faria sequer sentido, pois deveria ser uma característica própria da esquerda ser mais humanitária e inclusiva. Conscientizar as pessoas, disputar ou criar canais de comunicação e fazer o debate com todas as suas contradições. Ao contrário disso, há setores da esquerda radicalizando, fomentando a cultura de “cancelar” amizades nas redes sociais e na vida real.

Em parte, esse movimento que atingiu o ápice pós eleição de Bolsonaro está ligado com a reação da esquerda institucionalizada sobre os movimentos de junho de 2013. Até hoje, por exemplo, os sindicalistas ou dirigentes petistas mostram dificuldade para compreender aquela pequena revolução.

“(…) há uma esquerda que não consegue ver os frutos e sementes de Marielle Franco. É uma esquerda institucionalizada, que sofreu um golpe, é verdade, mas que não consegue abarcar essas novas lideranças e novos movimentos. Vai para a rua com caminhão de som, mas estamos falando de uma geração totalmente contrária ao caminhão de som”, disse Rosana.

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Na visão da antropóloga, “há uma insegurança da esquerda com essa geração que ocupa as ruas. Não raro a esquerda culpa junho de 2013 por tudo que aconteceu, já que não controla essas pessoas, não é algo centralizado. É muito mais fácil acusar de golpista e não fazer mais nada do que trabalhar politicamente. Precisa negociar, disputar essas multidões, e não culpá-las. A esquerda até quer a multidão, desde que seja controlada por bandeiras. Se não for, ela se torna um risco. Isso é o oposto de um processo de politização e da camaradagem, o que significa trabalhar dentro de uma lógica universal, de amor.”

Rosana alertou que enquanto a esquerda radicaliza fechando canais de comunicação, a direita “está se organizando desde os anos 2000, com think tanks e organizações bilionárias por trás. Absolutamente nada é espontâneo.”

Dessa forma, a esquerda se prejudica na disputa com a direita pelo público que é cheio de contradições, dúvidas, ressentimento e desesperança.

“Assim como vejo essa esquerda do cancelamento, que cresce muito e que tem força, vejo um público cada vez maior sedento e desesperado por pessoas que sejam abertas ao diálogo. Elas não têm referências ainda, mas estão buscando a nuance e a contradição do processo. E estão completamente órfãs. Então precisamos de uma esquerda que ocupe os canais de comunicação e que consiga um projeto de falar para a população, com todas as suas contradições. Significa falar com o caminhoneiro que quer intervenção militar e ao mesmo tempo queria Lula. Estou convencida de que há uma demanda por essas figuras. As pessoas estão sofrendo com essa radicalização, que não leva a nada, não é programática e não melhora a vida de ninguém.”

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Para ela, a esquerda precisa, em primeiro lugar, “disputar as pessoas, online e offline, e parar com a ideia de que existe uma cisão entre os dois. (…) Quando as insurgências e contradições vierem, e todos os trabalhadores trazem contradições, é preciso trabalhar para recrutar essas pessoas e trabalhá-las politicamente. Mesmo antes das fake news a direita já fazia isso muito bem. A gente precisa fazer material de qualidade com uma linguagem popular e aberta, que dê respostas à população.”

Outro erro da esquerda é não apresentar insistir na discussão de projetos contra o populismo de direita.

“A esquerda britânica está aí falando, está sonhando, está sendo radical… No Brasil, a gente só vê radicalismo da esquerda na Internet, nos xingamento e na lacração. Mas em termos de propostas, o que há de radical, de revolucionário, na esquerda brasileira? Que diga para um trabalhador que há um caminho? Quem tem a coragem de ser visionário, de ousar, de ser louco, de pensar algo que ninguém pensou? Todo dia vemos um cancelamento diferente, mas não vemos programa. Virou radicalismo de Twitter, não de proposta.”

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