Entenda por que música também é coisa para surdo
Saiba como a prática acontece e conheça o equipamento que cria ritmo com lâmpadas
by Laura Fernandes“Surdos e ouvintes não se misturam”, foi a frase que o então adolescente Irton Silva, 12 anos, escutou quando tentou convencer a mãe de um amigo surdo a deixar ele tocar percussão com os vizinhos, já que ele vivia na janela observando a batucada na rua. Hoje, com 47 anos, Irton, ou Mestre Batman como é conhecido, é músico, professor de música, griô e faz da frustração vivida na adolescência sua bandeira: música é, sim, coisa para surdos.
“A prática musical também pode fazer parte da cultura do surdo. Mas existe um preconceito, sabe? Os surdos têm a cultura surda e muitos deles acreditam que a música pertence à cultura do ouvinte”, pondera Mestre Batman. Criador do equipamento Metrônomo visual, que ensina os fundamentos da música por meio de lâmpadas de cores e tamanhos diferentes, o pedagogo pernambucano encerrou ontem, em Salvador, sua circulação pelo Nordeste com a Caravana MusiLibras.
Em sua primeira edição, o projeto patrocinado pelo edital Rumos Itaú Cultural realizou oficinas de sensibilização musical para crianças e adolescentes surdos, através da metodologia MusiLibras. O processo de ensino envolve dinâmicas de percussão corporal e introdução à teoria musical, através da matemática e de um alfabeto musical em forma de sinais visuais.
Ao mesmo tempo em que destaca que encontra resistência por parte de algumas pessoas da comunidade surda, Mestre Batman lembra que o preconceito também existe por parte de ouvintes que não acham possível o surdo aprender a tocar música. Mas na semana passada, por exemplo, Salvador conheceu um exemplo de que a combinação é possível.
Durante o Festival Acessarte, o cantor Saulo entrou no palco acompanhado por músicos do grupo Batuque de Surdos, formado por integrantes da Associação de Pais e Amigos dos Deficientes Auditivos (Apada). O evento realizado na Fonte Nova pela Unidade de Políticas Públicas para Pessoas com Deficiência (UPCD), no dia 3, celebrou o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência.
“Tocar é fácil e o surdo é capaz”, garante o jovem Heberg de Oliveira, 17 anos, deficiente auditivo frequentador da Apada que tocou com o grupo Batuque de Surdos no show de Saulo. “Eu gosto do ritmo e me sinto feliz. Participar do show foi um agradecimento profissional completo. Muita gente aplaudindo”, lembra, com um largo sorriso no rosto, o jovem que também participou da oficina apresentada por Mestre Batman, na sede da Apada no Rio Vermelho.
Limitações
Para vencer o preconceito, Mestre Batman defende que o primeiro passo é compreender que, antes do som acontecer, alguma coisa precisa vibrar. Seja a corda de um violão, ou a pele de um instrumento de percussão. “Essa vibração, tanto os ouvintes, quanto os surdos, podem sentir”, explica. Então, o pedagogo lembra que todo mundo nasce com a musicalidade, já que nosso coração mantém um ritmo para que o organismo possa funcionar.
“O ritmo já está dentro de cada um de nós, surdos e ouvintes”, reforça Mestre Batman, que lamenta a existência do preconceito. “Nossa sociedade infelizmente é excludente, porque as pessoas se acostumaram a enxergar apenas as limitações do outro”, critica. Então lembra do episódio da adolescência e lamenta o comportamento da vizinha com o filho surdo. “Será mesmo que ele não ia sentir o som vibrando?”, questiona.
Presidente-fundadora da Apada e mãe de um filho surdo, Marizanda Dantas, 80, conta que enfrentou o preconceito da própria família e dos funcionários quando decidiu criar um grupo musical de surdos na instituição. “Nós tínhamos preconceito. Na verdade, tínhamos dúvidas: será que eles conseguem?”, explica Natália Souza, 51, filha de Marizanda e gestora do Centro de Atendimento Educacional Especializado Marizanda Dantas, ligado à Apada.
Não só a música, mas outras linguagens artísticas como a dança e o teatro fazem parte das atividades gratuitas oferecidas pelo centro, criado há 27 anos por Marizanda. “Nessa época, os surdos ficavam na Rua Chile pedindo esmola. Não existiam escolas especializadas”, lembra a fundadora.
O estopim para criar a Apada, que também inclui serviço social e cursos de Libras entre suas atividades, veio quando ouviu um otorrino dizendo, de forma pejorativa, que não havia futuro para seu filho, a não ser virar “varredor de rua”. “Hoje, ele é professor de Libras”, conta Marizanda, orgulhosa.
Benefícios
Coordenadora do projeto de arte realizado na Apada, a professora de história Josiene Borges, 42, destaca que não só a música, mas outras linguagens artísticas mexem com a autoestima do aluno, estimulam a atenção e a curiosidade. “A arte é transformadora”, resume.
A professora de música, musicoterapeuta e regente do grupo Batuque de Surdos, Charlina Araújo, 35, concorda e destaca que a prática musical traz concentração, disciplina, desenvolvimento motor e cognitivo. “É encantador falar com as mãos. Me sinto emocionada e orgulhosa dos meus meninos”, sorri.
Depois da oficina na Apada, Mestre Batman confessa que já pensa em uma segunda temporada da Caravana MusiLibras, para continuar provocando o debate pelo país. “Os surdos são subestimados dentro da família, nas escolas e na sociedade. A gente quer mostrar que, na música, todo mundo é igual. Não existem diferenças quando a gente toca um instrumento. Todo mundo fala o mesmo idioma”, conclui.
Metrônomo visual cria ritmo com lâmpadas
Como os alunos surdos podem usufruir do metrônomo, aparelho que marca o tempo musical através de pulsos sonoros? Para resolver essa equação, o músico e educador pernambucano Mestre Batman criou o Metrônomo Visual: um sequenciador eletrônico que permite construir frases rítmicas através da combinação de lâmpadas de cores e tamanhos diferentes.
Reconhecido como uma tecnologia assistiva na educação musical brasileira, esse equipamento faz com que a melodia seja indicada por lâmpadas e alfabetos visuais-musicais que representam figuras de tempo musical como mínimas, semínimas, colcheias e semicolcheias. A combinação de lâmpadas não só representa a estrutura de um compasso, como faz a descrição visual das frases rítmicas.
“Também é possível trabalhar outros fundamentos da música, como a intensidade do som, só mudando as cores das lâmpadas. Esse equipamento também possibilita que o aluno entenda qual é a duração de tempo de cada uma dessas figuras. A gente consegue descrever elas através das lâmpadas”, explica Batman, idealizador do projeto Som da Pele, que deu origem ao grupo Batuqueiros do Silêncio.
Em uma linguagem mais leiga, é como se a lâmpada azul representasse uma palma, a amarela de tamanho maior significasse duas palmas rápidas e a vermelha equivalesse a uma pausa. “No nosso grupo, a gente tem integrantes que já escrevem música. Eles se apropriaram de tal maneira da teoria musical que entendem que cada figura de tempo equivale a uma sílaba”, conta Batman, orgulhoso. “A gente não enxerga as limitações, porque limitação todo mundo tem. A gente foca nas potencialidades de cada um”, finaliza.
Música para surdos: O que você precisa saber
Som
Os alunos captam o som através da vibração. A música acontece a partir do momento em que uma corda de violão vibra, por exemplo, ou a pele de um instrumento de percussão como o tambor e o timbau.
Metodologia
O ensino da música para surdos tem algumas metodologias. Entre elas, está a percussão corpo- ral: o professor pode aplicar no braço do aluno, por exemplo, para que aprenda a sequência e reproduza em seu próprio corpo e em um instrumen- to. ‘Com o exercício de percussão corporal, a gente percebe que os surdos aprendem mais rápido que os ouvintes’, afirma Mestre Batman.
Alfabeto
Ainda no que diz respeito à metodologia, o ensino da música pode ser feito através de um alfabeto musical em forma de sinais visuais descritos com as mãos. Os sinais representam figuras de tempo musical, como
as mínimas, semínimas, colcheias e semicolcheias.
Benefícios
A prática musical trabalha a memória, estimula o raciocínio, a concentração e a percepção do aluno, além de aguçar a curiosidade, estimular a percepção, a coordenação motora e o desenvolvimento cognitivo. ‘A música explora diferentes regiões da mente’, explica a musicoterapeuta Charlina Araújo.
Autoestima
Aprender a tocar uma música aumenta a autoestima, ‘porque a gente está lidando com uma questão de identidade cultural acima de tudo’, defende Mestre Batman.