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“A escravidão foi benéfica para os negros”, por Urariano Mota

"Então ele, o ex-macaco, flexível ligava aquele insulto, outro insulto, outros níveis de insulto a um aglomerado de coincidências malditas, que figuravam exceções no quadro geral da pátria de todas as oportunidades, aquela, os Estados Unidos"

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“A escravidão foi benéfica para os negros” *

Por Urariano Mota

Da notícia ontem no Vermelho: “Direitista que elogiou legado da escravidão assume Fundação Palmares

O presidente Jair Bolsonaro indicou para a Fundação Cultural Palmares um militante de extrema-direita que nega haver “racismo real” no País. Sérgio Nascimento de Camargo, novo presidente do órgão responsável pela promoção da cultura afro-brasileira, diz que a escravidão foi “benéfica para os descendentes”

Assim falou um negro! Para esse nível de amor ao chicote recebido no lombo, nem adianta esclarecer a loucura, a servil ignorância diante de tamanha adesão à indignidade. Prefiro narrar o quanto a escravidão fere a consciência de um homem humilhado, que retiro do meu romance “O filho renegado de Deus”. Nele, o negro Filadelfo confessa ao espírito do seu padrinho:

“Então eu fui até a sede do consulado americano e me apresentei ao ilustre político dos Estados Unidos. Edward Kennedy, como a maioria dos americanos, era mais alto que eu. Um jovem ainda. Ele era a cara do presidente, cara de artista de cinema. Levado pelo cônsul, eu disse a ele:

– Bom dia, Excelência.

Ele me olhou de cima a baixo, e com o rosto que era simpático com um sorriso, fechou a cara e respondeu de má vontade:

– Bom dia.

Então eu me apresentei:

– Eu serei o seu guia e intérprete no Recife, excelência.

Então uma jovem a seu lado, com jeito de fina, educada, parecendo uma condessa, então essa senhora falou para Edward, em gíria do Sul dos Estados Unidos:

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– Quem vai nos servir é este macaco?!

Sim, então nessa frase o negro Filadelfo sentu tamanha raiva, mágoa que o deixou ferido, então o negrinho sentiu, mas nem ao padrinho espírito Manoel de Carvalho confessará, que sentiu crescidas diante de si florestas de macacos, um povo de grandes símios, um mato, uma cerrada população de árvores onde pulam chimpanzés como ele, como a sua mãe, como a sua avó escrava, um povo de caricatura a pular como símios, onde estão os colonizadores filhos de colonizadores, netos de colonizadores, todos de capacete e rifle em safáris. É natural que não fale ao padrinho Manoel de Carvalho, pois o espírito acima de tudo não o perdoaria, Filadelfo não podia contar que apenas respondeu, quando deveria cuspir, escarrar no imaculado e gentil braço da suave dama, mas apenas falou:

– Senhora, eu não sou macaco.

– Oh, não, o senhor entendeu mal, ela não disse isso – meio a contragosto contemporizou o nobre representante dos Estados Unidos. Ao que ele, o macaco que falava, apenas disse:

– Senhor, eu falo inglês e entendo bem as suas gírias.

– Mas houve um engano.

Ao que ele, Filadelfo, se despediu com educação, melhor dizendo, com gestos de macaco domesticado.

Não, isso ele não dirá, isso não será falado, até porque ali como aqui, por autossuficiência ou ilusão, as mágoas sofridas, os golpes recalcados serão um gênero de má sorte, algo casual. A humilhação que lhe fizeram, com a grosseria de classe e cultura de burgueses norte-americanos, ele desculpou, pior, ele amenizará como um ato daquela mulher, daquela específica jovem, daquele específico momento, que deverá morrer naquele específico. Pior, ainda, Edward Kennedy sairá incólume do episódio, é claro, um rapaz gente bacana de um novo tempo, irmão do simpático e poderoso John, pois o bom Ted nada tinha a ver com aqueles maus modos da sua senhora. Talvez até houvesse depois discutido com ela, ido à beira de uma separação, de um divórcio, sabe Deus, por ela ter tratado um negro como sempre viu outros negros, como sempre as pessoas da sua classe e lugar viram os negros, aquela miserável moça específica. Tampouco possuíam culpa os guys gente humana do consulado, homens sérios, decentes, e muito menos culpa terá a gloriosa e estrelada bandeira. Não. Eles estavam mais para aplaudir o yarrarrarrá de Louis Armstrong, eles eram todos ternura como o veludo da voz de Nat King Cole, assim como as louras do cinema eram todas desfrutáveis, alcançáveis por todos os homens de todas as raças de todos os povos de todo o mundo. Pois o aprendizado de uma língua também é uma aceitação ideológica.

Yarrarrarrá jamais sorriria o austero Manoel de Carvalho, que o escuta neste momento. Como aquele macaco não atingia o específico e verdadeiro Filadelfo, no que ele estava certo, então ele, o ex-macaco, flexível ligava aquele insulto, outro insulto, outros níveis de insulto a um aglomerado de coincidências malditas, que figuravam exceções no quadro geral da pátria de todas as oportunidades, aquela, os Estados Unidos. A isso vomitaria o filho 55 anos depois. Aquela pátria, e o filho do filho do padrinho Manoel de Carvalho se revolvia na cama, ferido por aquela mágoa não ter sido respondida com um escarro, os Estados Unidos eram aquela terra de onde o pai trazia uísque, carne enlatada, camisa com resíduo de sabão em pó, revista de mulher nua, cigarro, cadeira portátil, leite condensado, pasta de amendoim, salgados da doce pátria norte-americana. O filho, como um filho contra o pai, em uma nova tradução do conto de Machado de Assis, ao filho insultava mais a ilusão, que era o soerguimento à categoria de humanidades tamanha soma de quinquilharias, vidrilhos, espelhinhos, latas, papel e excrementos que a gente do Norte jogava para os miseráveis do Sul do Equador. E lhe caíam agora, agora mesmo, quando Filadelfo se confessava ao estimado Manoel de Carvalho:

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– Eu sou muito perseguido, padrinho”.

*Publicado, originalmente, no Vermelho   

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